quarta-feira, 10 de novembro de 2021

prolongada hora do ocaso

"Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro
Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que te criei no interior da minha mente)"



rio de janeiro, urca: arquivo pessoal

teu nome é um segredo que carrego entre os dentes

mastigo a tua ausência todos os dias

engulo quilômetros de desejos

fincando as marcas do tempo nos grãos de areia

que se dissipam com a luz do sol

 

teu cheiro é uma cobiça que carrego embrulhado entre as pálpebras

que se desdobra e se espalha a cada bater dos cílios

espreitando o lençol rugoso das águas agitadas do mar

a se misturar com a atmosfera azul esperançosa

revelando o insensato gesto de oblivion

 

tua voz chega como um animal selvagem 

que se debate entre os fios dos meus cabelos

como um bicho enfurecido recém-capturado

e eu prisioneira das vontades tantas

transito entre as feras da paixão e da saudade


que me devoram por dentro e por fora nesta prolongada hora do ocaso


 ---


O., X – XI- MMXXI

 Always on my mind - Elvis Presley

terça-feira, 14 de setembro de 2021

intransponível

"Nuvens passam e se dispersam.
Serão essas as faces do amor, essas pálidas irremediáveis?
É para isso que meu coração se agita"?


imagem: arquivo pessoal

existe um mistério intransponível
na passagem das horas
na construção do tempo
do tempo que paira entre um respiro e uma palavra

existe um mistério intransponível 
entre a palavra que foi dita
e as que nunca foram esquecidas
amontoadas numa inexistência

existe um mistério intransitável
entre a memória e o presente
estado de permanência silente
ilusão insistente

existe um mistério intransitável
na passagem dos ciclos
que só aos ciclos pertence
e enredam a vida num abismo profundo

onde nada no mundo pode desocultar
imprimindo ao eternamente belo
a glória aprisionada no espaço, no tempo
e em todos os momentos que hão de ficar

---

XIV - IX - MMXXI


Tuesday's Gone - Lynyrd Skynyrd

segunda-feira, 28 de junho de 2021

o outro lado do mundo

"Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo".

marc chagall: vista de uma janela - vitebsk 


o amanhecer me espreitou
pelas festas da janela
e me despertou
com um beijo

intenso como a luz
que atravessava a vidraça
enchendo o quarto de claridade
e impregnadas cintilações

abri os olhos e me deparei
com os seus verd´águas
a me sorrirem
como se o outro lado do mundo

nunca tivesse existido
tampouco todos os desertos
em mim
não nos dissemos nenhuma palavra

porque naquele silêncio matinal
todo o guardado foi pronunciado
toda a linguagem suspensa verbalizada
sem oscilações ou incertezas

deslizando por entre pernas
ventre
seios
e toda a saudade do mundo 

findou
naquela idílica manhã
que mudou destinos
para sempre

com a cumplicidade
dos deuses
que os guiaram pelo único caminho possível:

estavam juntos outra vez!

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Olinda, XXVI - VI - MMXXI

The Way We Were, Barbra Streisand 

segunda-feira, 21 de junho de 2021

estação quatro cantos

"E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade".



imagem colhida da web. desconheço a autoria

guardo dúvidas
guardo sonhos
(a)guardo o momento

o cheiro do passado
impregnado no beijo macio
longevo, elegante, amadurecido

como um tanino
domado
nos poros do barril de carvalho

exalando o perfume do imenso desejo
desde que os nossos olhares
cruzaram a porta do tempo

e repousaram no brilho
que refletia sua demorada espera
de quando ainda ensaiávamos

uma história
que caminhou através do relógio
sua prolongada trajetória

até chegar à estação dos quatro cantos
no coração da cidade
onde repousamos as inquietações

--

Olinda, XX - VI - MMXXI

Miles Davis Quintet - It Never Entered My Mind

quarta-feira, 12 de maio de 2021

maio

"Tú eliges el lugar de la herida
en donde hablamos nuestro silencio.
Tú haces de mi vida
esta cerimonia demasiado pura".

Alejandra Pizarnik em Poema

imagem: marc chagall

a vida irrompeu em maio
até então não existiam:

o antes e o depois
a luz e a escuridão
a memória da flecha
e o tropel dos bisões

os peixes
as algas
a lua 
as estrelas

o desejo dos homens
a força das mulheres
os nomes
e todas as coisas vivas

o silêncio da esfinge
a dor e o gozo
as bruxas e as religiões
outros universos

o sal
a saudade 
o hálito
e o espelho 

os milagres
os mistérios
os anciãos
a arte

as ilusões
o barco e as imprecisões
o cetro e o rei
o centro do mundo 

as decisões
as leis
o vale da morte
e as montanhas

o desenho das nuvens
o movimento das marés
o espraiar das águas
o rasante das águias

as horas crepusculares
a explosão das cores
o despertar das flores
a chuva

os hábitos
as rochas
o riso
o siso

a liberdade
o esquecimento
os planos
a passagem do tempo

e os pássaros distraídos
que espelhavam o sol nas asas
o mesmo sol
que diluiu ícaro

e o refez
no ventre renascido
em bona dea
ou maya para além do arco-íris

--

Olinda, IX - V - MMXXI

Led Zeppelin - Tangerine








sexta-feira, 30 de abril de 2021

"o fim do mundo não vai chegar mais"

"E é glória do saber querer
Com longa história
Pra frente e pra trás"

Caetano Veloso

imagem: arquivo pessoal

eu preferi diluir aquela saudade incômoda

num cálice de vinho tinto

e deixar a esperança se estilhaçar

como se fosse os fragmentos do cristal quebrado


eu preferi guardar o desespero

na gaveta da cômoda do quarto da bagunça

a mesma bagunça que agitava meu coração vermelho

todas as vezes que o sino da igreja badalava as horas da espera


e aquele cansaço que pesava a alma

que vergava o corpo

que enrugava a esperança

que amargava o céu da boca


que apagava as estrelas

que borrava a lua

que fechava o céu

 e insistia em dizer:


"que o fim do mundo não vai chegar mais"

--

Olinda, XXX - IV - MMXXI

Renato Braz, Quero ficar com você

domingo, 25 de abril de 2021

idas e vindas

"[...] A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida".

Hilda Hilst em Amavisse

imagem: arquivo pessoal, Rua da Aurora - Recife

E a vida de vez em quando vai ficando assim: entre os escombros, envelhecida, cariada, desbotada.
Um aglomerado de situações mal resolvidas, inexplicadas, intrincadas, obscuras.
Idas e vindas.
Sentimentos imbricados, escondidos, ansiados.
Vai-se vivendo a roleta russa da emoção.
Brincadeira de roda, ciranda, passando o coração de mão em mão, experienciando o sentimento alheio.
Falcatrua emocional!
No devir - todos os dias -, uma inquietação, aquele desejo sem controle, de que em alguma esquina surja uma resposta, uma explicação, um sentido, a esperança de um milagre - se existisse -.
E os dias seguem, descoloridos, cheios de ferrugem, corroídos - e corroendo - e, vamos tropeçando no pensamento.
Se observarmos o entorno, ao emergirmos desse mergulho interior, até vislumbraremos alguns passantes, caminhando no passeio, alheios ao que em nós se passa, nem desconfiam do passado...
Para o silêncio, talvez só mais silêncio e resignação.

Resiliência e (in)compreensão.
A vida por vezes é tão ininteligível!

Recife, XXV - IV - MMXIII

    Eric Clapton, Can’t Let You Do It

    

quarta-feira, 31 de março de 2021

Ditadura nunca mais!

"A memória é a faculdade épica par excellence"

Walter Benjamin

imagem retirada daqui:20190328_ditaduranuncamais_sismmac

Há 57 anos – dia 31 de março de 1964 - o Brasil escrevia uma das mais tristes páginas da nossa história recente, marcada por uma extrema ferocidade.

A ruptura com a legalidade e a democracia, foi instalada no país, com o golpe de 1964 e a ditadura militar um regime brutal e violento.

Os militares estavam acima do povo e das leis, segundo Chiavenato (2014, p. 108) "sem o apoio do povo, o regime militar teve de suspender eleições, fechar o Congresso e desrespeitar o judiciário".

Apoiados pelo capital financeiro externo, pela elite econômica brasileira e os U.S.A., que respaldavam os políticos de direita, os militares foram meros executores do golpe.

O cenário era terrificante, nos primeiros meses, os militares detiveram cerca de "50 mil pessoas, aproximadamente". Empreenderam o que eles chamaram de "operação pente-fino", que consistia em ir de "rua em rua, de casa em casa", buscando "suspeitos, livros, documentos, qualquer coisa que ligasse os acusados ao governo anterior ou à 'subversão". 

Não importavam qual o papel, ou quem era a pessoa detida, mas estes tinham que provar sua inocência, ainda que não fossem culpados de nada. Naqueles idos, raras foram as lideranças "sindicais e estudantis" que "escaparam da repressão", prossegue Chiavenato (idem, p. 183).

Após a renúncia do presidente Jânio Quadros, João Goulart (de ascendência açoriana), um político gaúcho, conhecido como Jango, assumiu a presidência em um cenário de grande crise política, econômica e social. Seu governo compreendeu o período de setembro de 1961 a abril de 1964. 

Gestou-se uma grande conspiração em torno do governo de Jango, cujo conciliábulo, dispunha inclusive de financiamento do estrangeiro. Usaram da prática de aliciamento de intelectuais brasileiros e contou com amplo apoio da imprensa nacional entre eles os "Diários Associados" (já extinto), "Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Correio do Povo" (este do Rio Grande do Sul). 

Escritores, jornalistas e redatores também compactuaram com esse triste episódio, consoante Chiavenato (2014. p. 55), "hoje, a divulgação dos nomes desses escritores e jornalistas causariam espanto à desinformada opinião púbica brasileira", o historiador traz uma relação surpreendente dos colaboradores do Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, dirigido pelo General Golbery do Couto e Silva), que era um "núcleo de conspiração golpista com agenda política  própria", e um dos principais órgãos de maquinações contra o governo de Jango.

No rol estão o "poeta Augusto Frederico Schmidt, o jornalista Wilson Figueiredo, as escritoras Raquel de Queiroz e Nélida Piñon" (esta última era secretária do Instituto, na ocasião). Chiavenato (subidem), diz ainda que "o escritor José Rubem Fonseca", era "um dos líderes intelectuais do órgão" e tinha "entre outras tarefas, de autorizar o financiamento de documentários, selecionando cineastas e sugerindo roteiros".

Chiavenato (idem, p. 45) releva que "embora a administração de João Goulart encontre-se entre as mais investigadas na história do país", nenhuma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), encontrou "a existência de um sistema de corrupção instalado em seu âmago".

Qual a acusação então?

Foi taxado de subversivo! Além do que, a simples existência do seu governo incomodava as elites sociais e econômicas. Para o autor, "tornou-se necessário criar um clima ideológico que o apresentasse como subversivo e impatriótico". E assim foi feito, "com métodos científicos e muito dinheiro", continua. O curioso é que Jango, queria implementar as reformas para o capitalismo.

Jango teve como principal marca, "as tentativas de reformas". O Brasil era (e continua a ser), um país de miseráveis, privilegiando eternamente as elites econômicas. Não muito diferente dos anos 60.

O que era a Reforma de Base?

Era um plano de mudança que iria abarcar "quase toda a sociedade". Uma remodelação nas "áreas eleitora, administrativa, tributária, urbana, bancária, cambial, universitária e, certamente mais polêmica, a agrária", concorde Chiavenato (2014. p. 23).

Para Miguel Arraes, segundo Rozowykwiat (2016. p.110), "o golpe militar verificado no Brasil em 64 foi resultado de uma articulação internacional, promovida para assegurar o controle do processo político em países onde se observava uma intensa mobilização popular".

Era o povo acordando ao mesmo tempo em que se organizavam em associações, ligas, havia uma intensa movimentação popular... E isso era inadmissível para os poderosos.

Arraes, "não tinha dúvidas de que a motivação do golpe foi, predominantemente externa, resultando da aliança do capital internacional, das elites econômicas nacionais e dos militares, meros executores da intervenção",  prossegue a jornalista. 

Não há o que se comemorar, no 31 de março, data em que foi instituído golpe de 64 e a ditadura militar no brasil. Ocasião em que muit@s brasileir@s foram torturados, mortos, ou desaparecidos.

A Comissão Nacional da Verdade relatou ao menos 30 tipos de tortura(s), cada uma mais cruel e chocante que a outra. Entre elas, a introdução de baratas vivas, na vagina das mulheres, ratos vivos no ânus.

Os "presos políticos foram expostos aos mais variados tipos de animais, como cachorros, ratos, jacarés, cobras, baratas, que eram lançados contra o torturado ou mesmo introduzidos em alguma parte do seu corpo".

O cenário era aterrorizante em todo o território nacional.

De acordo com Chiavenato (2014. p. 105), "os militares no poder degradaram as regras políticas [...] ao 'perder a identidade', os militares subverteram o conceito de nacionalidade".

A violência e o grotesco "golpe militar em Pernambuco foi cruento".

O então  governador Miguel Arraes, uma das maiores lideranças  políticas desse país (e de ressonância mundial),  um dos mais perseguidos pelo regime, defensor da legalidade e da democracia, sempre resistente à ruptura que se instalava, não se submeteu ao golpe e recusou veementemente a apoiar o regime, condição para que ele permanecesse no cargo.

Naquele último dia de março de 64, havia uma intensa movimentação de militares, muitos armamentos bélicos, nas cercanias  do Palácio do Campo das Princesas (sede do governo de Pernambuco), apontados para a residência oficial.

Informado pelo coronel Dutra de Castilho, que ele estava deposto,  Arraes lhe respondeu:

- "o senhor não tem autoridade para me depor. Sou governador do estado, eleito pelo povo de Pernambuco e somente ele pode me depor. Ou então, o senhor quis dizer que estou preso e isso o senhor pode fazer pela força".

Arraes dizia que "a herança que deixaria para os filhos, seria a dignidade"!

Ditadura nunca mais!

---

Brasil, XXXI - XXX - MMXXI


Bibliografia

CHIAVENATO, Júlio José. 2016. O Golpe de 1964 e a Ditadura Militar. São Paulo : Moderna, 2014.

CAVALCANTI, Lailson de Holanda; COLARES, Valda. 2015. Magdalena Arraes: a dama da história. Recife: CEPE Editora.

ROZOWYKWIAT, Tereza. (2016). Arraes. Recife: 2016. CEPE Editora.

Disponível em:<https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/DoRSparaPoliticaNacional/Iniciacao_politica> Acesso em 31.03.2021.

Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_de_Pesquisas_e_Estudos_Sociais#:~:text=O%20Instituto%20de%20Pesquisas%20e,ativamente%20das%20articula%C3%A7%C3%B5es%20que%20culminaram>


Geraldo Vandré, Para dizer que não falei das Flores.


domingo, 28 de março de 2021

o silêncio expressa até o que não se imagina

 "O amor consegue ler o que está escrito na mais remota estrela"

Oscar Wilde em De Profundis. p. 55

imagem: marc chagall


quanto tempo é considerado longo demais 

para que se esqueça uma história que nunca terminou?

mede-se o tempo pelas horas, estações, cores

ou pelos latejos de dor?


quantos hiatos irreparáveis 

podem ser os flagelos

que levaram uma metagaláxia à ruína

pelas mãos invisíveis do silêncio?


o silêncio expressa até o que não se imagina

como se cada palavra não pronunciada

contasse de fatalidades e paradoxos

e envolvesse duas vidas no véu do mistério


um mistério que se supunha desvendar

quando o tempo fosse um bom tempo

para aquela vida dividida contar

e aquele universo estilhaçado 


em fios de universo costurar

e a grande paixão existente em ambas as almas

acalmar

porque dentro daquele pequeno coração 


todas as lembranças do vivido

"fez o deserto florir como uma rosa"

desde que seu riso em festa

anulou a sentença da despedida vivida no passado.

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Zizi Possi, Eu Velejava em Você

quinta-feira, 25 de março de 2021

o nascer de uma flor é como o amanhecer da humanidade inteira

"A luz irrompe onde nenhum sol brilha"

Dylan Thomas em A Mão ao Assinar este Papel. p. 29

vincent van goh: four cut sunflowers, 1887

no princípio era a admiração

depois veio a palavra, os gestos e o  riso

era como se a primavera explodisse a cada verbo pronunciado


brotavam flores nos lugares mais estranhos

nas mais inusitadas paisagens

das escarpas aos pântanos


a estação das floradas se abria com as pálpebras 

a cada desabrochar de um novo dia

e o campo dos sonhos se enchia de girassóis


o nascer de uma flor é como o amanhecer da humanidade inteira

ali se anuncia um tempo de fertilidade

no alvorecer que  irrompe 


no despertar de uma quimera

que ignora os rumores

os rubores do desejo que pulsa e se joga


no precipício íngreme onde o sol nem sempre brilha


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brasil, III - MMXXI

Barbra Streisand em Woman in Love

terça-feira, 23 de março de 2021

a valsa do pôr do sol

"No dia em que 'ocê foi embora
Eu fiquei sentindo saudades do que não foi
Lembrando até do que eu não vivi
Pensando em nós dois"
Lenine &Suzano

imagem: Direitos autorais: www.yamauchifotografia.com.br


de espanto em espanto o tempo acontece(u)
resta o delírio da velhice
a ideia de que a juventude persiste no sentimento
na velha foto amarelada esquecida entre os livros
nas anotações do caderno
linhas inseguras desenhadas para um futuro

de sonho em sonho
resiste a espera vã
aquela incansável que espreita as fímbrias do dia
aspirando que o vento refaça o percurso
e declare que foi uma noite de 40 anos
uma noite só, que guardou dentro dela uma vida inteira


de lembrança em lembrança
o ingênuo coração mergulha nas palavras doces
no convincente discurso de uma saudade fugaz
uma saudade doce, serena
que vez por outra refaz
o (não) vivido e o que se deixou por viver

de desejo em desejo
essa lubricidade incontrolável
faz um voo rasante nos fins de tardes com suas trilhas douradas
resguardando as asas das feridas dos caminhos
de ontem, de hoje e do porvir
porque esse pássaro intrépido ainda ousa dançar 

a valsa do pôr do sol à berma do mar

---

Lenine, O Último por do Sol


quinta-feira, 18 de março de 2021

o poeta tem a urgência da vida

"Uma palavra morre
Quando é dita
Dir-se-ia
Pois eu digo
Que ela nasce
Nesse dia".

Emily Dickinson em Poemas. p. 113

rené  magritte in the human condition, 1933


o trinco, a porta o prego, o pão

podem esperar, mas o poeta não

o poeta tem a urgência da vida

que pulsa em cada poema que explode no papel


o telefone quebrado

o pneu a ser trocado

aquela janela emperrada

que insiste na triste melodia indelicada de um não-madrigal


numa cantilena noturna

dobrando notas enferrujadas como as dobradiças atravancadas 

que não sustentam mais o peso da madeira 

do carvalho envelhecido


que já dão sinais de cansaço

de meta cumprida

tempo vencido

e que (não) alimentam o poeta


porque para o bardo o real infunde

a dor é matéria

a tristeza é o tempero

e a solidão a autopoiesis cobiçada


ah, poetas que se despem

nas palavras

e se deixam enlinhar 

letra a letra sacrificando todas as almas que têm 


quando nasce uma poesia

morre a inspiração do poeta, todavia.

--

Olinda, XVIII - III - MMXX

Lenine, É simples assim

sexta-feira, 12 de março de 2021

eu vi o meu coração pulsar dentro dos olhos seus

"Há muitas coisas que eu quero ver.
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo".

 Sofia de Mello Bryner Andresen em Chamo-te porque tudo ainda está no princípio

imagem colhida da internet, desconheço a autoria

eu vi o brilho do mundo dentro dos seus olhos

um reflexo do que me vai alma adentro

aquele clarão ancestral

que andava perdido

escondido nos porões da vida


eu vi o brilho do mundo dentro daquele olhar 

que me persegue diuturnamente

desde que entendi

que a vida resulta das decisões tomadas

ainda no tempo da ingenuidade


eu vi o brilho do mundo naquele retrato amarelado pela passagem cíclica da vida

seus olhos mergulhados nos meus

nossa sintonia 

nossa afinação

e a nossa alegria pubescente


eu me senti viva naquele brilho enverdecido

pedras de jade recriando inflorescências

transformando o percurso natural de todos os reinos da natureza

anulando anos de ausências 

descortinando a essência 


daquele amor cristalizado

guardado à revelia das estações

encetado na juventude

transbordando amiúde

para além da emoção


eu vi o meu coração pulsar dentro dos olhos seus!

---

São Luís, XXX - XII - MMXX

Caminhos de Sol, Zizi Possi

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

uma semana e um dia


"Para os teus beijos, sensual, flori! 
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos, 
Só me exalto e sou linda para ti"! 

Florbela Espanca em A Tua Voz na Primavera

imagem colhida na internet, desconheço a autoria
Para Edna e Rui
Uma semana e um dia
É o tempo que conto
Desde aquele anelo que me deste
Em Santiago de Compostela
Pedra incrustada
No desenho filigranado
Em prata e emoção

Uma semana e um dia
É o tempo que conto
Do brilho refletido
Na íris castanha
Dos olhos teus
E meus

Uma semana e um dia
É o tempo firmado
Em dois seres apaixonados
Quando nossas bocas em risos
Descobrem segredos silentes
Guardados no coração

Uma semana e um dia
Foi o tempo que a vida quis
E em sábia ponderação
Sedimentou o caminho
E enfeitou com flores brancas
Indicando a direção

Fomos caminhando devagar
Passos tímidos e delicados
Do percurso da memória desviados
Uma composição de histórias
Textos fragmentados
De uma trajetória que já não se sabe mais

Uma semana e um dia
Foi o tempo da alegria
Na estação primaveril
No interstício do sim e do não
Quando naquele instante
Ambos confiantes
Nos demos as mãos.

--


Porto,  XIX - III - MMIX

Paulo Gonzo, Sei-te de Cor








terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

um verso vivo

"Apenas com os meus
dedos
devagar te estudo 
Descrevendo na minha 
a tua pele"

Maria Teresa Horta em Meu labor insano

imagem recolhida na internet, desconheço a autoria


um verso vivo
(cunhado)
brasa na carne
que descreve um encontro
carvão e fogo

labes incandescente
abrasando o dia
incendiando a pele
(explosão)

All For A Reason, Alessi Brothers



quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

engodo

"Realmente não me importa ter que, um dia, começar tudo de novo.
Estou me complementando aqui, eu acho, e depois não sei.
Acho que a gente deve procurar viver o presente".

Caio Fernando Abreu in Cartas

                              imagem: Ismael Nery

Por dentro acontece um turbilhão, milhões de sensações novas, antigas, renascidas das vísceras - quase calcificadas, de tanto desistir de ser, por compreender a desnecessidade da exposição -, causadas pelo inesperado de um cataclisma.

Por fora uma aparente tranquilidade, já que exteriorizar o alarde interior não altera o curso de nada. Procede recorrer à uma pergunta banal: como pode caber dentro de alguém um sentimento maior que o mundo? Uma medida que não atende à nenhuma lógica matemática?

Mas existe, intangível e inexplicável, talvez uma grande ingenuidade, um devaneio aos olhos de quem não consegue ser a pessoa que aparentemente se apresenta, ou que desperta em outrem uma ilusão, que desorganiza calculadamente uma forma de existir, especialmente porque não passa de um engodo, uma falcatrua emocional.

É fácil perder-se, mas é do mesmo modo possível reencontrar-se, reencantar-se, posto que é uma qualidade que existe dentro do ser, que - à revelia da vontade, da cobardia de muitos aventureiros com a emoção alheia -, sobrevive e aprende com os próprios equívocos.

Ser prisioneiro de si é tão penoso e fatal quanto ser prisioneiro de alguém, o que se constrói nessa zona de dependência? 
Uma indagação para a qual nem sempre se têm resposta. 
Há sempre mais do que se sabe, do que se diz, nesse grande e inextinguível mistério, a que alguns chamam sentimento, paixão, amor; para alguns aprisiona; para outros, liberta. 

O ideal seria, repara bem, eu disse ideal, não o possível - existe uma grande distância entre um e outro -, ausentar-se de si, sair de dentro de si, enxergar-se de fora, e observar cada gesto, cada atitude, como quando se olha e atenta para outra pessoa qualquer, e aplicar as sugestões que certamente daria aquele que estaria fazendo, vivendo situação semelhante à sua.

O difícil é conseguir.
Falar, criticar, julgar, condenar, é suave e vulgar para quem o faz; mas custoso e penoso para quem é o alvo da censura. Todo mundo é um pouco vítima, de si e dos outros.

Olinda, XXX - I - MMXIV

John Coltrane, A Sentimental Mood.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Era só mais um carnaval

"o que me mantém vivo 
é o risco iminente da paixão 
e  seus coadjuvantes, 
amor, ódio, gozo, misericórdia” 

Rubem Fonseca em Histórias de Amor,  p. 33

imagem: arquivo pessoal

Era carnaval.
Já antes da quarta-feira de cinzas
o amor jazia no asfalto.

Misturado
aos confetes,
as serpentinas,
aos papéis rasgados,
aos documentos perdidos,

as latas descartadas,
aos cacos de vidros
ao caos de vidas.

Ali também estavam as purpurinas esmaecidas,
amanhecidas,
figurantes do tempo,
de um futuro distante,
que perdeu o brilho.

Na falta de tato,
na complexidade do cotidiano,
nas banalidades,
nas desimportâncias
e nas desistências.

Um tempo todo carnavaliza(n)do,
em todas as instâncias,
em todas as querências,
um tempo de máscaras
e
atuações histriônicas.

Era só mais um carnaval
e nem precisou da quarta-feira de cinzas
para anunciar seu final.

--

Recife, XIII - II - MMXVII

Hino dos Batutas de São José,  Babi Jaques Os Sicilianos e Maestro Spok.


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

o que você deixou de ser

"[...] Desamarre os laços inúteis
os nós do que não serve mais
desamarre o barco do cais
os nós das janelas
e então deixe que o vento..."

Roseana Murray em Receita de de desamarrar os nós


imagem: arquivo pessoal

"O que foi que você deixou de ser, depois que cresceu"?

Não abra mão do seu impulso interior, apenas escolha a melhor decisão para cada momento. Mantermos a nossa essência, a nossa identidade, em um mundo caótico, confuso e que insiste em nos homogeneizar, não se configura tarefa simples, mas é possível.

É só não esquecermos as nossas raízes,  quem somos e de onde viemos.Insistir para e com o bem, até o infinito, é um bom caminho.

Exercer a bonomia por mais desafiador(a) que seja, o seu resultado beneficiará a todos nós, é global, universal.

Mas também não  será o fim do mundo, se acontecerem os tropeços nessa jornada, faz parte da caminhada.

Tempo e espaço, são para além de conceitos necessários e apreensíveis: precisamos deles para as nossas vivências e, as nossas lições empíricas...

Olinda, MMXII

O Que é, O Que é, Gonzaguinha

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

dias de outono


"A vida é como um sonho; é o acordar que nos mata.“

Virgínia Woolf

imagens: arquivo pessoal

Sentou-se em um banco, na praceta defronte à clínica, acompanhada da Virginia Woolf.
Optou por esperá-lo fora do consultório, até que atendesse a todo os pacientes.
Queria aproveitar a luz, o vento e o clima outoniço de Lisboa.
Com a chegada do outono, eles sabiam que haveria uma ruptura.
Viveram tudo com intensidade.
A maturidade é um tempo em que se compreende melhor as circunstâncias.
Tinham ciência da distância geográfica que se estabeleceria doravante e, dos projetos profissionais de cada um.
Mesmo com dor, abriram mão dos sonhos e fizeram daquele almoço, um banquete de despedida.
Tomaram um "Delas Freres Crozes - Hermitage Les Launes" (safra 2016), depois café, com "Madeleines" e “Tarte Citron”.
Presenteou-a com chocolates, tomaram água e saíram do restaurante, foram caminhar um pouco. Ainda tinha um sol forte, ele então retirou seu chapéu Panamá da cabeça e o pôs na dela.
Entrelaçaram as mãos e saíram pensativos, flanando pela esplanada, seguiram resilientes até à casa.
No percurso, catava algumas folhas do chão e lhe entregava - porque sabia da sua paixão por elas -.
Logo que entraram no apartamento, ela foi seduzida pela estante que tomava uma sala inteira.
Ficou ali passeando por entre os títulos.
Atento à ela, percebeu o brilho nos olhos quando olhou sua colecção de História da Arte, ouvi-na murmurar:
- Rubens!
Ao mesmo tempo em que deslizava as pontas dos dedos, naquele livro.
Ele então o retirou do meio da colecção e ofereceu-lhe.
Ambos se entreolharam, ela estupefata, ele entre divertido e admirado com a reacção de contentamento dela.
Abracaram-se e mais uma vez, esqueceram o mundo lá fora e o que viria depois desse dia.
Era chegada a hora da partida, pôs seu capacete, entregou-lhe outro, montaram na lambreta e seguiram rumo à estação de Santo Apolónia e ao "novo" futuro.

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Cascais, V - IX - MMXIX

Non Je n'ai rien oublié, Charles Aznavour

domingo, 24 de janeiro de 2021

desejo na pele

"[...] Desfalecer
à pele
do sorriso
Sufocar
de prazer
com o teu corpo
Trocar tudo por ti
se for preciso"

Maria Teresa Horta em Morrer de Amor

imagem colhida na internet, desconheço a autoria

Ela o conhecia não apenas com a alma.

Mas também com o cheiro, com o gosto, com as mãos, com a boca. 

Ela o conhecia com a pele.

Esse vasto órgão que os cobriam,

Eriçavam e com o qual se tocavam.

Era a pele que transpirava à proximidade. 

Era com a pele que se emaranhavam um no outro.

Imergiam um no outro.

Transbordavam.

Era com os poros que eles se respiravam. 

Corpos emaranhados como se tramassem um exótico desenho.

Cheio de sol,

Luz diurna a reluzir o desejo explícito.

Peles  diluídas,

Expandidas nas asas velozes da excitação.

Sim. 

Essa era a voz deles: o sussurro da pele.

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Deusa do Amor, Caetano, Moreno, Tom e Zeca Veloso 


b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...