Hilda Hilst
abri a página no nº 57
não havia nenhuma mensagem
folha limpa
de um breviário
revestido de ausências
hiatos e reticências
porque pairavam sobre todos os tempos
outros tempos tão loucos, indecifráveis
a noite, o silêncio e as estrelas
mais um dia
mais outro
se seguia
a página 57 estava à espera
da escrita
do rabisco
dos desenhos e espirais do tempo
feito molas soltas
deixadas aleatórias sobre a superfície do caderno em sépia
que ela carregava pela vida afora
na vida que foi possível
que brilhava amiúde
que vibrava também adminutim
entre tréguas e
entregas
naquela página 57 escreveria sobre vinhos
nada de iras
francesinhas, risos, alegrias do momento
de uma solenidade em que se evocava
a distância transatlântica, continental
dentro de um projeto pessoal
que alimentava e recriava um mundo
fechado a sete chaves
envolto no passado
daquele tempo guardado
em júbilos de cetim
naquela avidez de ternura que nunca teve fim
a pagina 57 carregava um simbolismo
algumas cartas não enviadas em fitas atadas
um retrato imaginado
o beijo imortalizado
na efígie em branco e preto
um antigo desejo eternizado
daquela viagem que não fizeram a paris
Porto, III - I -MMXIX
Beth Hart, Fire On The Floor