por que devo dar-te um nome se nomear exige a presença do nomeado da coisa que coisa és? para que limitar em um nome tudo aquilo que em mim provocas se ainda nem lhe conheço e apenas vagueias entre os desejos sem formato cheiro ou dor
nos meus desertos insones
para que devo dar-te um nome se nada sei sobre amor sobre o rosto sobre o corpo ou pudor que coisa és? diz-me porquê atiças e revolve a poeira escondida entre os meus sótãos na terra derramada do jarro sem flor que coisa és? quem és? diz-me agora: és tudo ou nada! -- Lisboa, VI - IX - MMXIX Chet Baker, I' Am a Fool to Want You
"Aos olhos nus, não passava de um chuva repentina,
mas aqui dentro soava como uma tempestade".
Clarice Lispector
imagem colhida na internet, desconheço a autoria
Já não sei mais se espero a madrugada, espontaneamente, se de caso pensado (ou sono perdido), ou ainda se ela reside em minhas esperas, que até mesmo eu, desconheço o que esperar.
Mas espero a madrugada. E a madrugada me espera também.Temos um encontro marcado, mudo. E nunca nos atrasamos.
Ela chega. Muitas vezes com uma chuva fina, miúda, cheia de brandura.
A cidade está silenciosa, não se escuta nada além do chuvisco que desliza de forma macia e suave pela vidraça da minha janela, criando visões e sensações particulares.
Penso nos demais seres madrugadores que "habitam essa terra desolada" em que se transforma a cidade, neste pré-alvorecer. Estarão vendo o mesmo céu? Ouvindo o mesmo som da chuva? Chove também para eles? Estarão protegidos?
Entre tantas indagações, vou à cozinha, faço um chá de hibisco, volto devagar e me planto outra vez a observar o que é possível desde o lugar em que estou.
Pequenos borrifos de água formam uma cortina transparente, numa ilusão de ótica, uma espécie de código de barra inesperado.
Reparo na iluminação da minha rua, luzes neon e de mercúrio se misturam sobre os telhados das casas e rebrilham no asfalto, agora molhado.
Espicho os olhos para além dos edifícios que ladeiam as ruas e percebo que uma tonalidade vermelha vai adquirindo outra nuance, ao se projetar por sobre a copa das árvores. Como se do alto, caísse uma tintura para matizar a densidade da neblina, misturando-se aos revérberos das luzes e do sereno.
Pequenas antenas parabólicas, fixadas na cobertura do prédio defronte, parecem cegonhas pousadas, descansando em seus ninhos, como se a madrugada anunciasse o fim do expediente, a hora da inatividade dos voos, do adormecimento.
Dirijo-me então ao quarto, tentando não achar que estou desperdiçando noites.
Ponho o Miles para tocar, apago a luz, fecho os olhos e me deixo levar pelas notas diferenciadas do seu trompete magistral.
Daqui a pouco é outro dia.
Apesar da mesma rotina, tudo se renova, tudo espelha o novo momento desse dia, que o tempo trouxe, para ser mais um contabilizado no calendário dos homens.
era de dentro da exaustão que brotava aquele eco desconhecido que assombrava o vazio da noite que trazia o peso de todas as lágrimas derramadas por toda a humanidade de todas as coisas humanas que causavam estranhamentos aos deuses que espécie alienígena é o homem, pensavam mas os deuses abandonaram os homens em seus próprios flagelos em suas lutas e ruínas e os encarceraram na ilusão do poder uma cobrança e um fardo do pecado original mas os deuses estão mortos. e os homens ao léu os destinos definidos nos jogos de dados nas cartas viradas sobre a mesa na moeda que cai sem cara ou coroa perdidos em paixões mergulhados nas fabulações barganhando a mesma vida de sempre --- Olinda, XVI - V - MMXX Miles Davis, Alone Together
é reorganizar as memórias e todos os desejos em cada rua uma lembrança em cada esquina um riso feliz um fascínio renascido em cada praça o farfalhar das folhas e a algazarra das gaivotas em cada igreja em cada altar em cada casa em cada sobrado a vida a pulsar um Outono em cada jardim uma esperança em meu coração uma fera contida a deslizar atenta sorrateira pelos desvãos da cidade -- Porto, Estação de São Bento, VI - X - MMXIX Rui Veloso, Porto Sentido
Noite Estrelada Sobre o Ródano: Vincent van Gogh (1888)
para que ouvir silêncios
se o corpo todo grita e a cabeça convulsa destila a sede das palavras na mudez da noite? a noite longa é um léxico antigo usado, desgastado reescrito em palimpsesto que ninguém lê mais o tempo arruína tanta espera e a escuridão engole os mistérios indecifráveis dos teus olhos que não abrem não avistam as estrelas que rasgam as noites abrindo fendas expondo desejos enquanto calo e bebo mais uma dose de ilusão Lisboa, XX - XI - MMXIX Chet Baker, Almost Blue