quarta-feira, 27 de maio de 2020

que coisa és?

"Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado 
Surdo à minha humana ladradura". 

Hilda Hilst 

                 salvador dali: endless enigma (1938)

por que devo dar-te um nome
se nomear exige a presença do nomeado
da coisa
que coisa és?

para que limitar
em um nome
tudo aquilo que em mim provocas
se ainda nem lhe conheço e

apenas vagueias entre os desejos
sem formato
cheiro ou dor
nos meus desertos insones

para que devo dar-te um nome
se nada sei sobre amor
sobre o rosto
sobre o corpo ou pudor

que coisa és?
diz-me
porquê
atiças e revolve a poeira

escondida entre os meus sótãos
na terra derramada
do jarro sem flor
que coisa és?

quem és?
diz-me agora:
és tudo ou nada!

--

Lisboa, VI - IX - MMXIX

Chet Baker, I' Am a Fool to Want You


quinta-feira, 21 de maio de 2020

chá com chuva

"Aos olhos nus, não passava de um chuva repentina, 
mas aqui dentro soava como uma tempestade".

Clarice Lispector
imagem colhida na internet, desconheço a autoria

Já não sei mais se espero a madrugada, espontaneamente, se de caso pensado (ou sono perdido), ou ainda se ela reside em minhas esperas, que até mesmo eu, desconheço o que esperar.
Mas espero a madrugada. E a madrugada me espera também.Temos um encontro marcado, mudo. E nunca nos atrasamos.
Ela chega. Muitas vezes com uma chuva fina, miúda, cheia de brandura.
A cidade está silenciosa, não se escuta nada além do chuvisco que desliza de forma macia e suave pela vidraça da minha janela, criando visões e sensações particulares. 
Penso nos demais seres madrugadores que "habitam essa terra desolada" em que se transforma a cidade, neste pré-alvorecer. Estarão vendo o mesmo céu? Ouvindo o mesmo som da chuva? Chove também para eles? Estarão protegidos?
Entre tantas indagações, vou à cozinha, faço um chá de hibisco, volto devagar e me planto outra vez a observar o que é possível desde o lugar em que estou.
Pequenos borrifos de água formam uma cortina transparente, numa ilusão de ótica, uma espécie de código de barra inesperado.
Reparo na iluminação da minha rua, luzes neon e de mercúrio se misturam sobre os telhados das casas e rebrilham no asfalto, agora molhado.
Espicho os olhos para além dos edifícios que ladeiam as ruas e percebo que uma tonalidade vermelha vai adquirindo outra nuance, ao se projetar por sobre a copa das árvores. Como se do alto, caísse uma tintura para matizar a densidade da neblina, misturando-se aos revérberos das luzes e do sereno.
Pequenas antenas parabólicas, fixadas na cobertura do prédio defronte, parecem cegonhas pousadas, descansando em seus ninhos, como se a madrugada anunciasse o fim do expediente, a hora da inatividade dos voos, do adormecimento. 
Dirijo-me então ao quarto, tentando não achar que estou desperdiçando noites.
Ponho o Miles para tocar, apago a luz, fecho os olhos e me deixo levar pelas notas diferenciadas do seu trompete magistral.
Daqui a pouco é outro dia.
Apesar da mesma rotina, tudo se renova, tudo espelha o novo momento desse dia, que o tempo trouxe, para ser mais um contabilizado no calendário dos homens.

Olinda, Maio de um estranho tempo de MMXX

Miles Davis Quintet, It Never Entered My Mind

segunda-feira, 18 de maio de 2020

olhares para o vazio da noite

"Ser inteiramente livre e ao mesmo tempo 
inteiramente dominado pela lei 
é o paradoxo da vida humana"

Oscar Wilde em De Profundis. p. 49

imagem: chagall

era de dentro da exaustão
que brotava aquele eco desconhecido
que assombrava o vazio da noite

que trazia o peso de todas as lágrimas
derramadas por toda a humanidade
de todas as coisas humanas

que causavam estranhamentos aos deuses
que espécie alienígena é o homem, pensavam
mas os deuses abandonaram os homens

em seus próprios flagelos
em suas lutas e ruínas
e os encarceraram na ilusão do poder

uma cobrança e um fardo do pecado original
mas os deuses estão mortos.
e os homens ao léu

os destinos definidos nos jogos de dados
nas cartas viradas sobre a mesa
na moeda que cai

sem cara ou coroa
perdidos em paixões
mergulhados nas fabulações

barganhando a mesma vida de sempre

---

Olinda, XVI - V - MMXX

Miles Davis, Alone Together



quarta-feira, 13 de maio de 2020

revisitar o Porto

"E é sempre a primeira vez
Em cada regresso a casa
Rever-te nessa altivez"

Rui Veloso em Porto Sentido




revisitar o Porto
é reorganizar as memórias
e todos os desejos

em cada rua uma lembrança
em cada esquina um riso feliz
um fascínio renascido

em cada praça
o farfalhar das folhas
e a algazarra das gaivotas

em cada igreja
em cada altar
em cada casa

em cada sobrado
a vida a pulsar
um Outono

em cada jardim
uma esperança
em meu coração

uma fera contida
a deslizar atenta
sorrateira

pelos desvãos da cidade

--

Porto, Estação de São Bento, VI - X - MMXIX

Rui Veloso, Porto Sentido



quarta-feira, 6 de maio de 2020

noite

"Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses".

Hilda Hilst 

Noite Estrelada Sobre o Ródano: Vincent van Gogh (1888)
para que ouvir silêncios
se o corpo todo grita e
a cabeça convulsa
destila a sede das palavras
na mudez da noite?

a noite longa é um léxico
antigo
usado, desgastado
reescrito em palimpsesto
que ninguém lê mais

o tempo arruína tanta espera
e a escuridão engole os mistérios
indecifráveis dos teus olhos
que não  abrem
não avistam as estrelas

que rasgam as noites
abrindo fendas
expondo desejos
enquanto calo
e bebo mais uma dose de ilusão

Lisboa, XX - XI - MMXIX

Chet Baker, Almost Blue





b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...