"...Não somos os mesmos, mas sabemos mais uns dos outros.
E é por esse motivo que dizer adeus se torna complicado!
Digamos então que nada se perderá. Pelo menos dentro da gente..."
João Guimarães Rosa
Niña delante de la chimenea - Balthus
Penélope era uma criatura ímpar, se diferenciava em cada detalhe das demais mulheres. De uma invulgaridade até então desconhecida, tudo nela era inaugural. Cada gesto, cada suspiro, cada passo e situação tinham o caráter de primeira vez.
Diferentemente da maioria das outras mulheres, Penélope fazia uma coleção sui-generis: colecionava adeus(es), sim, ela guardava todos os adeus(es) sofridos ao longo da vida, cada adeus recebido ia para a caixa de porta-adeus(es). Tinha o cuidado de etiquetá-los, e deitá-los carinhosamente naquela caixinha de madeira, com ébano incrustado no tampo, para que não se diluíssem entre si e se perdessem na corrente do esquecimento. Achava que lembrar ajudaria-na a não cometer os mesmos erros, que nada mais se repetiria. E jamais esquecia o que lhe faziam. Inventariar suas tragédias, era uma forma de ausentar-se de si mesma, saía da posição de protagonista para expectadora, naquele teatro que sempre fora a sua simplória existência.
Mas havia um adeus em especial, aquele, aquele que ela jamais gostaria de ter recebido, trocava toda a sua coleção por um não-adeus dele.
Estava como sempre estivera, inerte e pálida, quando o viu, Ulisses surgiu do nada como uma aparição, não se assustara porque no processo em curso, já não se surpreendia com nada, e a inesperada chegada daquele homem não se configurava um grande acontecimento. Estava imóvel diante do que chamava de autopoiesis, imersa em suas dores, suas perdas e suas solidões, por onde quer que olhasse, só se deparava com seus restos. Tudo era deserto e destruição. Aquela presença inopinada não a demoveu da sua imobilidade e alheamento, para quem fechara a porta do inferno e sobrevivera aos tantos dilúvios, nada lhe dizia alguma coisa. Já não diferenciava luz e sombra; calor e frio; sol e chuva; fome e sede. Penélope estava tão anestesiada que desconhecia coisas e valores tais como: "prudência, justiça, fortaleza, temperança, fé, esperança e caridade", muito menos amor. Dizia que isso de amor era invenção do ócio, de alguma mente desocupada e em conluio com o inominável. Se acreditasse em destino diria que o seu era o pior dos piores. Que havia nascido para o lamento e o suplício. Achava-se a maior de todas as vítimas, até gostava de viver enclausurada nesse seu conforto entorpecido, nessa pele de sofredora.
Ulisses nada precisava dizer, porque qualquer movimento era como se já tivessem vivido desde os tempos mais remotos, numa ancestralidade (in)comum, eram o espelho um do outro; os olhares se complementavam, e a vida tinha um sabor até então jamais experimentado. Sem o mínimo esforço, conseguia dela todos os seus segredos, confessava-se a ele, como quem desejava expiar todos os seus pecados (que nem existiam).
Ela tivera tudo e perdera tudo, quando Ulisses veio, e quando foi embora, após dizer-lhe calmamente, como se estivesse anunciando o princípio do mundo: "amo-te"! E saiu sem olhar para trás, com seus passos largos, mãos nos bolsos, assoviando, e sumiu engolido pela neblina daquela madrugada, que Penélope odeia até hoje! Entendeu que aquela confissão fora o grito de liberdade dele, e o aprisionamento dela, essa declaração tornou-a cativa da esperança, coisa que ela jurara nunca mais ter. Além de afastá-la de qualquer outra relação que porventura, ela ainda desejasse experimentar. Declama nos palcos da vida, que qualquer pessoa só é verdadeiramente livre, quando está destituída de qualquer tipo de paixão. Segundo ela, aprendeu com o Bertrand Russell, e que já nem sabe mais no que acredita. E nem tenciona creditar mais nada à nada.
Todas as madrugadas ela fica em vigília, atenta aos movimentos e sussuros do vento, esperando, quem sabe, algum milagre acontecer, caso acreditasse em milagres. E quando ela se descuida do esquecimento, vai ao espelho e torrenciais lágrimas lhe escapam dos globos oculares e borram toda a maquiagem, escorrendo como um veio d´água, preto, pela face, e lhe deixa com o nariz vermelho e os olhos molhados e brilhantes. E ela tem ojeriza a espelhos, porque diante deles, não pode negar quem é, ou quem deixou de ser; ali ela está despida de qualquer mentira ou desculpas, está nua diante de si mesma e todo o sentimento que ainda existe por e para Ulisses, um estúpido que materializou-se do nada e desmaterializou-se também do nada. Mas que ainda respira em seu peito. Que coração absurdo e bobo é o dela! Embora ciente de que romper esse laço é preciso, já não sabe mais sobre precisão. Não obstante, mais que tudo é preciso prosseguir, só existe essa (é a única) saída.
Desde então, Penélope odeia o amor entre um homem e uma mulher (esse amor sexualizado, carnal) e seus desdobramentos, tanto quanto as madrugadas. E até hoje ela tece a teia que a libertará de todos os adeus(es) sofridos. E se afoga (e se afaga) nas taças de vinho que eles bebiam diariamente.
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Olinda, XXX - XI - MMXI
*"no 'Aurélio' traz a flexão em "adeuses", já o 'Houaiss' não".
da cassia eller (e paulinho moska) que canta, com fabão: nada vai mudar isso