quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A cidade é que nasce em nós

"Olinda é só para os olhos, 
não se apalpa, é só desejo. 
Ninguém diz: é lá que eu moro. 
Diz somente: é lá que eu vejo". 
Carlos Pena Filho













Um dia eu acreditei que nascíamos na cidade. Mas foi por pouco tempo. Sou cada vez mais convicta de que é a cidade que nasce em nós.
A minha relação com Olinda, é um caso de amor desde a ancestralidade, desde que ela não era ainda Patrimônio Mundial. Mas já era em mim o maior de todos; ela nem me conhecia, mas já vivia em mim.
Quando penso que já a fotografei por todos os ângulos, em todas as suas cores, alegrias, risos, movimentos; em todas as horas, luzes, todas as praças, ruas, telhados, escadas, depredadas fontes, casarios antigos, portas e portais, igrejas e velhos sobrados coloniais; encontro a solidão de uma palmeira que se ergue no azul do céu; ou ainda um gato que se esgueira por uma janela, curioso e desconfiado, caminhando sobre o muro.
Percebo que a cidade nunca é a mesma, ela se modifica todo dia. E outra(s) vez(es) me pego deslumbrada com outras perspectivas e instantes que eternizo em minhas retinas, meu coração e minh ' alma.
Imagino-a jovem, em seus primeiros anos, com suas primeiras construções. Suas ruas de pedras cinzentas com o sol refulgindo o branco de suas casas, seu passado de lutas, derrotas e glórias.
Histórias!
"Mas a cidade não conta o seu passado, ela contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras".
Cada canto e cada detalhe me são íntimos, desde as gotas de chuva que escorrem das folhas das árvores, até aquelas que caem dos fios que se entrelaçam nas ruas. Seja numa manhã cinzenta ou numa tarde gris, ou num pôr de sol que cai no mar e alaranja o céu, refletindo seus raios sobre os barcos que descansam nas águas ou que conduzidos por pescadores, e solitários retornam do mar e ancoram ali, nas proximidades da barra que separa a fúria da calmaria.
Vejo pessoas jovens e velhas sentadas às mesas nas calçadas, jogando conversa fora - e dentro do espírito -, um dedo de prosa que só nos faz bem.
Conversas que nos chegam de dentro das casas junto com o odor de café vindo de não sei onde.
Uma dinâmica que só em Olinda (r)e(s)xiste, com toda beleza, esplendor e descaso administrativo.
Olinda, ao mesmo tempo que é cosmopolita, é provinciana, quase todos os moradores se conhecem, se encontram nas praças, nos bares, nos festejos. Basta uma boa prosápia e todos se tornam amigos.
De Olinda se pode falar de todas as maneiras, mas a minha escolha será sempre a linguagem amorosa, com olhos que contemplam as mais belas paisagens, em todas as extensões possíveis, mesmo cônscia dos problemas. Porque sei que uma cidade não é feita apenas disso.
Olinda se cristaliza e se dilata ao mesmo tempo dentro de mim.
Ainda que a cidade receba um fluxo contínuo de visitantes (tem e vem gente de todo canto do mundo), mesmo sem oferecer uma estrutura decente a quem até aqui se desloca, todos se sentem nativos e estrangeiros em suas ruas.
Também eu me sinto estrangeira nesse conjunto de belezas que ela encerra.
Estrangeira no sentido de que todo dia ela é outra, uma nova cidade para mim.






moticono heart
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quarta-feira, 1 de julho de 2015

antes de nascer o mundo

"Existir é tão completamente fora do comum que
 se a consciência de existir demorasse mais alguns segundos,
nos enlouqueceríamos.
Clarice Lispector in Aprendendo a Viver: imagens. p. 81

imagem - salvador dalí

I
antes de nascer o mundo
- antes de nascer um -
o desenho a ser criado 
o primeiro borrão
o primeiro risco
o primeiro rascunho
vi o primeiro riso
o teu!

II
se eu soubesse de tudo
se tudo que eu fizesse soubesse
porquê o faço...

III
mas tu
tu
o que saberás de mim
será o escuro do silêncio
a despedida em meu olhar
e a passagem do tempo

IV
depois
só depois que os meus pés cruzaram a esquina
da tua vida
é que tudo terminou
terminou o nosso tempo
eternizei meu nunca mais
adeus!

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Porto  - XXV - IV - MMIX

Cassia Eller canta, Luz dos olhos

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Impenetrável

"Todos podemos, ao longo de uma vida, conhecer várias existências. 
Eventualmente, desistências. 
Aliás, o mais habitual".
José Eduardo Agualusa in Teoria Geral do Esquecimento. p. 45

 Les amoureux en vert  -  Marc Chagall

Como uma cápsula recoberta por uma matéria impenetrável, o interior foi cingido da não-emoção. 
A impassividade deu lugar a qualquer sentimento, a qualquer sentido ou percepção emocional. 
Como se a vida, o passado, de repente, como um insight, passaram a ser apenas um tempo contado para trás. 
Todas as histórias vividas transmutaram-se em ficção, em realismo mágico fantástico, em narrativas anônimas, sem autores, inexpressivos sobreviventes de um mundo em destruição, sem futuro, sem perspectiva, sem amanhãs.

Olinda, XVII - V - MMXIII

Clapton, canta do George, While My Guitar Gently Weep

b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...