terça-feira, 29 de outubro de 2013

V vezes

  "Mas se sou eu quem o sonho 
    posso dar-lhe o nome que quiser" 
José Eduardo Agualusa in O Vendedor de Passados.  p. 89

casal - ismael nery

I
quando tu escultor
esculpes meu corpo em nuvens
me desfaço as  formas
sou só paixão 

II
 não sei como chamar
esse desmaio que vivo
cada vez que lhe encontro
daí a razão de não acordar do passamento

III
a água da chuva não chega
para matar a sede
nem para levar 
aquilo que é leve e mora no peito

IV
os olhos já em festa
quando lhe vejo por perto
quando lhe olho por dentro  
quando me atiras a seta

V
quando acertas o alvo
quando tuas mãos me cercam
quando o jogo acaba
quando em mim desaguas. 

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Veneza,  XIX - V - MMIX

John Coltrane, Naima


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

a vida é o que acontece enquanto deixamos tudo para depois

"Assovia o vento dentro de mim. Estou despido. 
Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, 
sou minha cara contra o vento, a contravento, 
e sou o vento que bate em minha cara".
Eduardo Galeano in A ventania, O Livro dos Abraços. p. 270

imagem: henri matisse

A vida é o que acontece enquanto esperamos o melhor tempo para viver, enquanto escrevemos nas entrelinhas, enquanto nos escondemos dentro dos parênteses, enquanto suspendemos uma alegria, enquanto costuramos uma alegoria.
A vida é esse inevitável espaço entre os dias e as noites, é o que retardamos, é o que não realizamos quando a oportunidade chega. É o sinal que fechou e perdemos a travessia, é  o não quando deveria ser sim; ou o sim quando podia ser não. É aquela viagem inesperada, que jamais havia sido planejada.
A vida é aquele sorriso que não damos quando uma borboleta passou por nós, e não acompanhamos a evolução do seu voo e não nos admiramos das suas asas carregando as cores e os movimentos. É quando o telefone tocou e era uma ligação errada, quando derramamos sem querer o vinho na pessoa ao nosso lado, quando tropeçamos na calçada. É o esbarrão na esquina, é abandonar a agenda ao menos uma vez.
A vida é aquela canção que toca ao longe, aquele assovio ritmado que nos chega de algures. 
É alterar o percurso conhecido para ver novas paisagens, é fazer uma atividade nunca pensada, é a rotina odiada, mas é também o acontecimento inusitado.
Viver é todo o tempo que temos e estamos perdendo, ocupados com coisas e pessoas complicadas, sendo felizes ou infelizes. Existe um tempo que corre e não espera por ninguém, à revelia de cada solidão, à revelia de cada ilusão. 
Viver é aquela alegria negada, aquela ousadia abandonada, uma insensatez auto-permitida, um desatino consentido. Viver é aquele raio de sol que invade a fresta da janela logo cedo na manhã que nasce, e, para a qual fechamos a claridade com a cortina.

Viver só se aprende vivendo, não tem outra fórmula ou solução.
Viver é aquilo que acontece enquanto deixamos tudo para depois.
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Paris, XI - MMVIII

E o Filipe, um grande amigo e dos meus poetas preferidos, escusado dizer sobre o seu talento, grandiosidade e sensibilidade, sempre presente, nos dá um presente:


O tempo anoitece, traço a traço, ocultado
Enquanto a vida, rasurada, num sublinhado se traça
na insensatez de um verso escuro
na abundância da perda inesperada
Existimos dentro da inevitabilidade de um poema
abandonado

Enquanto a vida acontece
deixando tudo para trás

..... 


E as contribuições talentosas continuam, eis a generosidade da Piedade:

A vida é um pião que de vez em quando nos salta da mão
E
Cai no chão
E
Nós com jeito ou talvez não
Levantamos do chão
Uma
Duas
Muitas vezes

A vida é cor, alegria é mar
É paixão

A vida é tudo o que
Nos faz viver
Com e sem razão

E é tâo bom viver
 
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Norah Jones, The Story



quinta-feira, 10 de outubro de 2013

escárnio

"encontro-me habitualmente entre estranhos, 
porque enquanto sou arrastado por uns e por outros
não tenho tempo para magicar nas tristezas da minha vida".
F. Scott Fitzgerald in O Grande Gatsby. p. 73
 
 escárnio - emil nolde

a inverdade é tão poderosa
na mesma proporção em que
alguma verdade
pode entre os escombros
persistir

é transitória como a vida
temporária como a eternidade
para quem serve a eternidade
para que serve o amanhã
para que tantas manhãs?

para que imortalidade
se teus dias são feitos de inutilidades
jóias em ouro, prata, escárnio e poder?
poder efêmero como a luz diáfana 
da manhã desperta

no teu olhar difuso
na confusa rede
de tantas artimanhas
nessa enfadonha personagem

que já não te cabe mais

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E o meu amigo e grande poeta, generoso, farto em expressividade, Filipe Campos Melo, que sempre sofistica minha tímida escrita, nos traz a sua potência poética:

Dizem que todas as verdades são, por natureza, transitórias
Digo, a inverdade, na sua desproporcionada proporção, é seguramente mais poderosa

Como se escreve

"a inverdade é tão poderosa
na mesma proporção em que
alguma verdade
pode entre os escombros
persistir"


A mentira subsiste às derrocadas, persiste entre escombros,
É arma - ofensiva -
É uma ofensa - que se arma difusa
quase eterno escárnio.

É um murro aparentemente inultrapassável construído na palavra que se faz pessoa personagem
(ás vezes até no verso - por incompatível que pareça)

Mas, no final do dias, talvez seja apenas engano

"Para que serve a imortalidade se os dias são feitos de inutilidade?"

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Olinda, XXV - IX - MMXIII

herbie hancock, alone and i



b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...