imagem: recolhida da internet, desconheço a autoria
quando tudo era amorfo e nada existia além da sombra & luz apenas o sono dos deuses nada fora do dentro nada dentro do fora nenhum tempo passado, presente ou futuro só o limbo o silêncio a singularidade a ideia do Cosmo o medo nas estepes e a ilusão das pedras a ausência do riso o desejo estrangeiro a ser delineado no mapa nas linhas que porventura colidiram entre o profano e o sagrado por inesperado atalho fez chegar à terra prometida replicada nas mil manhãs ensolaradas passadas ao seu lado -- Lisboa, V - IX - MMXIX Robert Plant, Promised Land
Todos os dias no mesmo horário, às 5h, ouço o seu canto suave e com a precisão métrica que o distingue dos demais.
Às vezes nosso encontro se dá quando eu vou deitar, ou quando estou a acordar, mas é de uma pontualidade que supera qualquer relógio suíço.
Seu trinado não é um canto comum, não se parece com nada que eu já tenha escutado.
Não sou uma ornitóloga, é bem verdade, nada percebo de pássaros, mas aquele canto não é de pardal, bem-te-vi ou qualquer outra espécie de fácil reconhecimento, até mesmo pelas criaturas como eu, ignorantes ao tema.
Mas o que ele tem de especial?
Tudo e nada.
Mas é seu o chilreio que me faz correr da janela do quarto à sacada, em busca da sua materialidade, do seu garganteio que enche meu coração de paz e esperança.
Com a natural curiosidade de quem está diante do maior advento do Planeta e estou, a vida acontece apenas uma vez e todos os dias, busco compreender em mim o seu significado nesse instante das nossas existências.
Cada manhã reanimamos um ao outro.
Ainda que ele não saiba da sua vocação para me alegrar, num gesto quase de oração, fecho os olhos e através da minha sintonia com o Cosmos, emito ondas da necessidade da sua permanência em minhas manhãs, nascentes de uma outra eu, cotidianamente.
Uma melodia que me diz de fé, de liberdade e leveza.
Indiferente (?) às agruras do mundo e da humanidade, ele aceita a sua condição de voar, cantar e seguir, se equilibrando onde pode,onde dá, como se nada no mundo fosse mais importante do que simplesmente cantarejar e preencher os nossos dias com as mais melodiosas notas de confiança e amizade, como se fosse a nossa senha, o nosso pacto para que depois desse ritual, o dia e a vida finalmente começarem. Ele, o pássaro da vida!
A Natureza é sábia, têm seus mistérios e lições.
Hoje, só por hoje eu queria ser essa liberdade pousada a poucos metros da minha vista.
É assim: dacoleba, tutiban, ziticoba, letuban [...]
Isso quer dizer uma coisa que nem o imperador da China entenderia?”.
Clarice Lispector em Um Sopro de Vida
obra: mário nunes
olhei de soslaio ao longo da rua e vi uma sombra em movimento acocorado como se, se arrastasse furtivamente carregando o peso da existência se assemelhava a um homem mas era um cão um bicho-cão andando pela rua vazia cheia de silêncios e da minha curiosidade na sacada o bicho-cão seguia como se fosse o dono da rua como se fosse o dono de tudo
como se fosse o dono do mundo
farejava a vida com curiosidade
demarcava sua territorialidade
urinando nos postes
na calçada
e no meio-fio
em seu focinho
trazia a história da humanidade
o acúmulo das descobertas
as dúvidas
e a liberdade
e vi a poesia no cão -- Olinda, XXVI - III - MMXX Lester Young, Prisoner of Love
pelos caminhos labirínticos corriam os mamutes os touros os bisões os porcos-espinhos e todas as feras desconhecidas que habitavam a caverna da minha memória, uma caverna platônica cheia de projeções imagens de tempos ancestrais de tochas de fogo bandeiras tremulantes refletindo o brilho de todas as estrelas, sonhos estendidos como roupas nos varais. alheios e indiferentes às eminências aos deuses ao tempo ao carvão ao caos à mudança das coisas de besta à criatura os animais seguiam trotando. -- Granada, IX, MMVII Lenine, Tubi, Tupi
"Cultivar o deserto como um pomar às avessas: [...] onde foi maçã resta uma fome" João Cabral de Melo Neto
lençóis maranhenses, imagem colhida na internet, desconheço a autoria
entre a fundura e o poço tem o tempo tem o deserto tem a areia e as mudanças do vento entre a fundura e o poço tem o tempo o deserto do deserto planícies cobertas de sal e um sol ofuscante no céu
entre a fundura e o poço
tem o tempo tem a história tem o sonho e os desperdícios entre a fundura e o poço
tem o tempo
as serpentes e os lagartos
um coração em alvoroço e um oásis em algum canto -- XV - III - MMXX Charles Aznavour, Non je n' ai rien oublié