quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

da ausência

"As emoções mais fortes são as que, 
nos tomam de surpresa e têm uma duração curta, 
pois essas emoções são um anúncio da eternidade inevitável do ser humano".
L.B.Vicente

imagem colhida na internet

A maior tristeza da paixão é a ausência do ser amado. Estar perto é uma exigência do sentimento. E quando isso não é possível, há uma permanência dolorosa da distância. Amar não deveria rimar com chorar. Choro não é compatível com esse afeto.

O aparente alheamento, a notória e vulgar incompreensão da sozinhez dos apaixonados - pelos demais do entorno -, como uma atitude de isolamento e reflexão, não é uma ato de extrema solidão, mas uma necessidade de proteção da afeição, da lembrança, da memória, da atmosfera onírica, lúdica da chama que existe/ia; é uma forma de proteger o regozijo pelo qual se foi arrebatado, a preservação do que era um mundo, do que era a cumplicidade entre dois seres que se amaram tanto, e que por algum imponderável, por um imprevisto do desavisado destino, há uma separação, e não permite a continuidade daquilo que não foi planejado e aconteceu. "As coisas simples podem-se alterar drasticamente e quando menos esperamos".

A sua ausência é tão real que eu chego a tocar na falta que você me faz; materializa-se o vazio da nossa distância, nem mesmo esse galope tão acelerado, desmesurado, consegue alcançar o seu sorriso do outro lado.
E como as horas passam à revelia dos sentidos, refugio-me entre as páginas dos livros, guardando-me e aos meus sentimentos, do barulho do mundo. És tão dentro de mim!

Olinda, XXVIII - I - MMXIV

Djavan, Esquinas

domingo, 26 de janeiro de 2014

o tempo

"Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo"...

céu de Olinda ao entardecer

A  Praça do Carmo fervilhava de gente, no palco um jogo de luzes, fumaça e imagens a partir das sombras. Eu assistia ao show do Jards Macalé - em seguida viria Gilberto Gil -. e enquanto a música rolava lá fora, um rebuliço acontecia no peito. Fiz uma retrospectiva do tempo guardado dentro de mim, a memória trazendo um pretérito hoje tão perfeito. Uma explosão silenciosa, aquele misto de alegrias, dores, lembranças & saudades.
O tempo e suas tempestades; o tempo e suas temperaturas; o tempo e seus (des)acontecimentos; o tempo e suas farsas; o tempo e suas farpas; o tempo e seus desafios; o tempo e seus desertos; o tempo e suas imensidões; o tempo e seus cheiros; o tempo e suas falhas; o tempo e suas fagulhas;  o tempo e a vida que pulsa e brota; o tempo e seus obstáculos; o tempo e a (im)paciência; o tempo e suas vontades. O tempo senhor de tudo. Que me deu tanto, que me tirou tanto (que me doeu tanto).
Já não é mais cedo, mas é possível.

Deslumbro-me com o show e o espetáculo da vida que segue, sem levar em consideração minha humanidade e minhas vertigens vividas, que sigo junto, com tantos encontros & desencontros, muitas chegadas & partidas!


Jards Macalé - Pontos de Luz

domingo, 19 de janeiro de 2014

ulisses & penélope

"Com sua disciplina indisciplinada, os amantes são seres diferentese o ser diferente é excluído porque vira desafio, ameaça.
        Se o amor na sua doação absoluta os faz mais frágeis, 
ao mesmo tempo os protege como uma armadura".
Lygia Fagundes Telles 

imagem: antónio domingues

Penélope via em Ulisses a personificação de todos os seus desejos, da humanidade à magia do improvável. A vida tinha um sabor nunca antes experimentado. Amava-o, ao mesmo tempo em que era apaixonada por ele, entre gozo e provocações lhe confessava:
- a paixão é ampla, mas pode ser por um autor, por uma imagem, por um livro, uma poesia, uma viagem... e até por alguém, mas não necessariamente por alguém como imagem, mas alguém como ser que deslumbra pelo todo, pela totalidade. 
 Ao que Ulisses respondia:
- Íbis, minha Íbis.Todos nós, sem excepção, buscamos incessantemente  o amor e a paixão e somos  engolidos constantemente pela sofreguidão de sermos amados, todavia temos receio da insegurança de amar. Deixa-nos de rastos. Fragiliza-nos o medo do desconhecido.
- O que mais me dói é saber que eu e você nunca seremos nós.  Oh tristeza...
Penélope sangrava, quando a ironia se estabelecia entre ambos, doía mais que as impossibilidades que os afastavam. E quando Ulisses percebia aquela tempestade de tristeza nos olhos dela, suavizava e dizia-lhe o que ela queria ouvir:
- Ontem, vá lá saber porquê, sonhei com os espaços abertos, com os lençóis de água... e voava; depois sonhei q fotografava os trabalhadores da cana do açúcar, na sua labuta amarga alternando entre o Ansel Adams e o Sebastião Salgado. Sabes interpretar sonhos?
Ansioso pelo próximo eclipse, mando-te mil beijos.
Já restabelecida da moléstia que adoecia seu coração, Penélope flutuava entre o limbo e o portal daquela janela que os aproximavam, e caía outra vez em seus abraços, de olhos fechados, voz macia e pausada, pronunciando todos os "enes" e "agás", misturava-se ao sotaque que só o amor conhece, desconsiderava as ausências necessárias, se existiam, tinham sua razão de ser.
Com o brilho nos olhos e a boca incontida em riso dizia ao amado:
- Eu tenho uns gostos diferentes, daí cada um ser único em seu jeito, em sua forma, em seu íntimo. Mas antes: oi, bom dia, acordaste bem? Andam estranhando o seu estranhamento - aquilo que parecia uma conversa sem pés nem cabeças, para eles não careciam explicações, o diálogo foi construído no entranhamento, na ancestralidade, conheceram-se antes de nascer o mundo - (?)
Por aqui cada um carrega um ponto de interrogação no olhar, aproximam-se com a mesma velocidade com que se afastam, guardam uma ambiguidade comportamental, porque dizem que ando também ambígua, achas isso, "bêibi"? 
Mamãe disse que isso tem um nome, e dizia o seu.
(E fiquei pensando cá com meus botões: as mães sabem das coisas).

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São Luís,  IX- I - MMXI

Gustavo Santaolalla, De Usuahia a la Quiasca
 

domingo, 12 de janeiro de 2014

faz de conta

"A barca que eu vi fugir
Era uma ilusão perdida,
Uma dor a mais na vida,
Na vida do meu sentir.
Era uma esperança perdida
Que ia sem se despedir".
Manuel Laranjeira (neto) in Miragem, do livro, em prosa e verso. p. 142

boats in rapallo, italy - wassily kandinsky

e segue adiante aquele pacto mudo
silencioso
sem argumentos ou barganhas
aquele fingimento
aquele pranto escondido
aquele faz de conta
faz de conta que ninguém existe
faz de conta que o mundo acabou

faz de conta que não se sabe de hoje
faz de conta que o passado não importa
faz de conta que não houve excesso
faz de conta que tudo mudou
que a saudade desistiu
faz de conta que o barco partiu
faz de conta que o amor findou

faz de conta que nada se conta
faz de conta que a esperança afundou
faz de conta
faz que nada
que nada se conta
faz a conta
não faz nada

nada nada nada
(é o eco dessa história!)

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Olinda - XII - I - MMIV

Chico Buarque e Telma Costa, Eu Te  Amo

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

o encontro

"[...]No lugar da muda voz,
Falam minhas indefesas estrofes,
Instintivamente composta no caos.
Sua ordem é o acaso de nós.[...]"
Filipe Campos Melo em O que de Mim Escondo, do livro, Na Utopia Sou Profeta. p. 19

ismael nery - o encontro
era como se o mundo me engolisse
e eu engolisse o mundo com as entranhas
desejei uma solidão que não tinha
vivi um sentimento inventado

[não nascido, forjado
não era credível
mas com a fúria da catástrofe
qualquer gota a mais
transbordaria o represado]

uma suspensão do mundo
naquele corpo vivo
gozo profundo
derramado na carne crua
encrespando a pele à luz da rua
 
um sentimento talhado na luxúria
na provocação do andar
na transgressão da noite
no esbarrão do olhar
na fome de ontem

na ar(v)idez da sede
no despudor do desejo
águas correntes
torrentes desaguadas

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Olinda, MMXIII

miles davis, embraceable you


domingo, 5 de janeiro de 2014

o peso da palavra

"As palavras, como os seres vivos, nascem de vocábulos anteriores [...]
Outras, logo ao lado, parecem altivas e delicadas orquídeas. [...]
ofegantes, indefesas, caídas de repente nesse vasto alarido que é a vida".
José Eduardo Agualusa em Milagrário Pessoa. p. 15

imagem: kandinsky

a palavra em si tem um peso
um rumor, uma sentença escondida
um tempo guardado
um sabor escolhido

a palavra pronunciada é um mundo que se anuncia
orvalho que alimenta as manhãs
fruto que da semente germina
luz que a escuridão alumia

a palavra pode ser a esperança lançada
um código re-criado
um porvir aguardado
um caminho aberto a outras invenções

a palavra bem dita
é diálogo proporcionado
oportuna maturação do que já passou
paz a quem deseja encontrar

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São Luís, I - I - MMXIV

chico buarque, futuros amantes





b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...