domingo, 19 de janeiro de 2014

ulisses & penélope

"Com sua disciplina indisciplinada, os amantes são seres diferentese o ser diferente é excluído porque vira desafio, ameaça.
        Se o amor na sua doação absoluta os faz mais frágeis, 
ao mesmo tempo os protege como uma armadura".
Lygia Fagundes Telles 

imagem: antónio domingues

Penélope via em Ulisses a personificação de todos os seus desejos, da humanidade à magia do improvável. A vida tinha um sabor nunca antes experimentado. Amava-o, ao mesmo tempo em que era apaixonada por ele, entre gozo e provocações lhe confessava:
- a paixão é ampla, mas pode ser por um autor, por uma imagem, por um livro, uma poesia, uma viagem... e até por alguém, mas não necessariamente por alguém como imagem, mas alguém como ser que deslumbra pelo todo, pela totalidade. 
 Ao que Ulisses respondia:
- Íbis, minha Íbis.Todos nós, sem excepção, buscamos incessantemente  o amor e a paixão e somos  engolidos constantemente pela sofreguidão de sermos amados, todavia temos receio da insegurança de amar. Deixa-nos de rastos. Fragiliza-nos o medo do desconhecido.
- O que mais me dói é saber que eu e você nunca seremos nós.  Oh tristeza...
Penélope sangrava, quando a ironia se estabelecia entre ambos, doía mais que as impossibilidades que os afastavam. E quando Ulisses percebia aquela tempestade de tristeza nos olhos dela, suavizava e dizia-lhe o que ela queria ouvir:
- Ontem, vá lá saber porquê, sonhei com os espaços abertos, com os lençóis de água... e voava; depois sonhei q fotografava os trabalhadores da cana do açúcar, na sua labuta amarga alternando entre o Ansel Adams e o Sebastião Salgado. Sabes interpretar sonhos?
Ansioso pelo próximo eclipse, mando-te mil beijos.
Já restabelecida da moléstia que adoecia seu coração, Penélope flutuava entre o limbo e o portal daquela janela que os aproximavam, e caía outra vez em seus abraços, de olhos fechados, voz macia e pausada, pronunciando todos os "enes" e "agás", misturava-se ao sotaque que só o amor conhece, desconsiderava as ausências necessárias, se existiam, tinham sua razão de ser.
Com o brilho nos olhos e a boca incontida em riso dizia ao amado:
- Eu tenho uns gostos diferentes, daí cada um ser único em seu jeito, em sua forma, em seu íntimo. Mas antes: oi, bom dia, acordaste bem? Andam estranhando o seu estranhamento - aquilo que parecia uma conversa sem pés nem cabeças, para eles não careciam explicações, o diálogo foi construído no entranhamento, na ancestralidade, conheceram-se antes de nascer o mundo - (?)
Por aqui cada um carrega um ponto de interrogação no olhar, aproximam-se com a mesma velocidade com que se afastam, guardam uma ambiguidade comportamental, porque dizem que ando também ambígua, achas isso, "bêibi"? 
Mamãe disse que isso tem um nome, e dizia o seu.
(E fiquei pensando cá com meus botões: as mães sabem das coisas).

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São Luís,  IX- I - MMXI

Gustavo Santaolalla, De Usuahia a la Quiasca
 

10 comentários:

  1. "buscamos incessantemente o amor e a paixão e somos engolidos constantemente pela sofreguidão de sermos amados". Como Penélope e o seu Ulises...A insegurança de amar pelos perigos da vida.E eles nunca foram eles.

    Beijinho

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  2. Siempre es complicado el mundo del amor. Tú lo representas muy bien con el tiovivo, pues algo de eso tiene, cuando nos sumergimos en él, giramos, giramos y giramos...hasta que se acaba.
    Abrazos.

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  3. Boa noite,
    Encantado com os seus sonhos e sua criatividade.
    Abraço
    ag

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  4. Val, minha querida
    Obrigada pelo carinho da tua presença na minha «CASA».
    As tuas palavras elogiosas fizeram muito bem ao meu ego, que foi lá para as alturas! :)))
    Continuação de uma óptima semana.
    Até sempre
    Beijinhos

    Sempre gostei de Penélope e Ulisses. Até, num arremedo de poema que escrevinhei, os citei :)
    Ah! E as mães sabem das coisas, simmmmmmm.

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  5. Um texto (simultaneamente descritivo e etéreo)
    que parte de uma referência mitológica (devidamente enquadrada)
    e se distende numa interrogação intemporal

    Sim, todos nós procuramos incessantemente o tempo desconhecido

    Bjo.

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  6. Campo de questionamentos e de ansiedade que desconhece mudanças de tempo e de cultura. Bjs.

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  7. Para já deliciei-me com o texto (sei que o voltarei a ler - avariou-se a bateria do pc e só amanhã terei uma compatível).
    Mas a citação que colocaste no início é por demais significativa: ousar ser diferente é um desafio e, ao mesmo tempo, um encantamento, um enamoramento em si próprio.
    Saio "enamorada"...
    Bjo :)

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  8. Oi, 'bêibi' :))

    Reencontrei Penélope e Ulisses aqui nas tuas cartas...(serão os mesmos?)

    Cumplicidade que não necessita de conversas lógicas. Um sorriso, uma ou mais palavras aparentemente sem nexo, tudo é percebido e revelado e relevado. E o amor manifesta-se assim também. E também na insegurança de amar. E no medo do desconhecido. A alma humana se renova nestas inconstâncias.

    Eu também me renovo, lendo os teus poemas e os teus textos.

    :)

    Bj

    Olinda

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  9. Voltei, como prometi, pois não pude ler o texto como queria...
    Saboreei-o e acrescentei-o à minha compreensão do que é amor e as razões de o perseguirmos seja em que aspeto for...
    E como partilho o que está subjacente no texto!
    Bjo :)

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