domingo, 27 de outubro de 2019

luar ausente

"Você já falou o que precisava ser dito, 
agora é esperar a pessoa estar pronta 
para um dia ouvir." 

Carpinejar 
imagem: arquivo pessoal (peniche)

na escuridão do quarto:
pensamentos cúpidos
memória insistente

corpo vivo
riso lascivo
mãos insolentes

impulso irrefreável
desejos indômitos
apesar da tepidez

e um apelo discreto
à noite indiferente
que produza a magia

de levar a voz
a hora e a vez
do sentimento tanto

que brota profundo
dentro de um singular mundo
ao luar ausente

--

Porto, XX- IX- MMXIX

Styx, Babe

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

o que vem depois do depois?

"Quem és? Perguntei ao desejo. 
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada".
Hilda Hilst


imagem: arquivo pessoal

para onde olhava via vermelho
nas folhas, nas flores, no sol
era como se o dia e a noite
obedecessem a uma só lógica

há muito havia deixado para trás:
a lua, as estrelas e a ilusão
tudo era cru 
tudo era nu

e um monocromatismo
para além da imensidão
aqui e ali
um azul 

para mostrar o tempo em contramão
se frio havia
não sentia 
a vida estava longe demais

sem pássaros
sem cantoria
andava em qualquer canto
sem contato com o mundo

o que outrora fizera sentido
hoje é só um rabisco
sem nexo
no centro da questão:

e o que vem depois do depois?

--

Porto, XXV - X- MMXIX

Leonard Cohen, Happens to the Heart



segunda-feira, 21 de outubro de 2019

a poesia existe?

 "toda revelação de Beleza coloca o ser humano 
diante de Deus mesmo".

Felipe Magalhães Francisco

imagem: arquivo pessoal

a poesia existe?
ou 
o que existe é o ser poético
que habita em nós?
não existiria a poesia
se em cada ser que sente
não sentisse vontade  de fazer poesia?

essa vontade de trespassar o tempo
o arco
a dor
a alegria
e os estilhaços
fractais de sentimentos

ressentimentos
desilusões
acontecimentos banais
que para o poeta
é a matéria crua
onde  faz a catarse

e costura 
as metáforas
as flores, as abelhas, o mel
o mar, o sal, as ondas
as conchas, caravelas, gaivotas
e o céu

desenha as estrelas
pinta o farol
ilumina o caminho
realça as rochas
e apresenta o cais

o poeta é o artista
que nos amplia a vista
alimenta a vida
aquieta a nossa alma

inventa palavras
códigos e sinais
inventa um universo
o sol vermelho
e o outo lado da lua

o poeta é estrada
é poeira
é profusão
é voz que adverte
fala que diverte
é multidão
lagar da solidão

é o poeta o deus da poesia?

--

Porto, XXI - X - MMXIX

Michael Kiwanuka, Cold Little Heart



sábado, 19 de outubro de 2019

aqueles que fazem o mundo

Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos.Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo".
 Buda
                                             imagem: arquivo pessoal


uma vez alguém me disse:
- admiro aqueles que fazem o mundo
que acreditam naquilo que fazem
que vivem daquilo que criam e 
que acreditam no que criam

eu admiro ainda os poetas
os músicos
professores
filósofos
todos os artistas

porque do que nada existe
criam a existência 
e a beleza da vida
para todos nós

inventam modas
esquecem as horas
esquecem a casa
aquecem a vida
embriagam o mundo
enlouquecem

e só então
eras depois
lhes atribuem o galardão
que de nada serve
posto que
a única coisa que serve nessa vida
é ela mesma
o existir enquanto se existe
a plenitude dessa existência

como cuidas da sua
como a percebes
como é
como és
és?
--

Porto, XIX - X- MMXIX

George Harrison, My Sweet Love



sexta-feira, 18 de outubro de 2019

o deslindar da vida

"Eu mesma não entendo minha enormíssima paciência 
de ficar à toa, só pensando, pensando e sentindo".

Adélia Prado
imagem: arquivo pessoal

acordar
dormir
não desejar
caminhar
respirar

e o teu cheiro vivo
espalhado pelo meu corpo
amalgamado
como um unguento
contra a saudade
como um repelente
a afastar inclemente
qualquer outra aproximação
alimentando a inconstância
e a indefinição
e a contradição
e o deslindar da vida:

acordar
dormir
não desejar
caminhar
respirar

prosseguir.

Porto, Estação de São Bento, V - X- MMXIX

Chet Baker, Tenderly

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

aquietemos

"Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim, calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas"

Olavo Bilac


imagem: arquivo pessoal porto)
com que então não aquietemos 
a mente?
uma vontade solitária
até tem força
se expande ao léu
além

mas a vontade isolada
é só uma lufada de vento
que revolve as folhas
o pó
assanha os cabelos
assanha

e nem se dá conta
do que emaranhou
com que então não aquietemos
os sonhos?
e deixemos a cumplicidade 
na gaveta

no cemitério dos desejos
na caixa de guardados
ou
escondidos entre os papéis
amassados
sobre a escrivaninha

que o tempo amarela
as linhas
embaralha as letras
e vira papel velho
que já não vale mais
nada
aquietemos, pois.
--

Porto, XVIII - X - MMXIX

Chet Baker, Lament


terça-feira, 15 de outubro de 2019

hoje eu chorei

"Por enquanto estou inventando a tua presença"
Clarice Lispector
imagem colhida na internet (desconheço a autoria)

hoje eu chorei
mas foi só dentro do peito
o coração ficou apertado
como se vestisse uma roupa
que não lhe coubesse mais

hoje eu chorei
mas foi de olhos fechados
sozinha, como quando
em criança nos põem de castigo

hoje eu chorei
de costas para o mundo
e de frente à parede 
apaguei a luz
vesti as meias nos pés
puxei o edredão
e me joguei no escuro

hoje eu chorei
como quem não tem paz
como quem não tem pai
como quem não tem lar
como quem não ama

hoje eu chorei de desengano
de desalento
de desencanto
mas foi só hoje
amanhã
eu não choro mais
--
Porto, XV - X - MMXIX

Janis Joplin, Cry Baby

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

sem edição

"Muita coisa que ontem parecia
importante ou significativa amanhã
virará pó no filtro da memória"

Caio Fernando Abreu

imagem: arquivo pessoal


eu quero a inocência
do amador
a pureza de
um olhar sem edição
um momento
captado
na pressa
no espanto
na difusa
imagem
de um equipamento
sem precisão

desfocada
sem luzes artificiais
exposições
pontos
brancos
sombras
e claridades
eu quero só a felicidade
de apontar
a câmera
e disparar
rumo ao foco
e guardar
o registro

mesmo que o comboio passe depressa

--

Porto, VIII - X - MMXIX

Belô Veloso, Dama da Fotografia

terça-feira, 8 de outubro de 2019

deslumbramento de fim de tarde


"Tão pouco para dizer-te
Tão urgente
dizê-lo"
Leonard Cohen

imagem: arquivo pessoal

estar aberto para a vida
é espantar-se com a natureza
criadora de espetáculos impossíveis
à engenhosidade humana

sair de si mesmo
da solidão da ciência
levantar o olhar do trabalho
e o espichar pela janela

deslumbrar-se
ante a perspectiva inesperada
de um céu a mudar de cor
entre o azul esmaecido 

e o fogo brando
trespassado por finas linhas
de nuvens
a traçar caminhos

e geometrias
numa paisagem que a vista não se cansa
de admirar
arrematada  pelo sol  de fim de tarde
se diluindo 

compondo o cenário
único
irrepetível
magistral

enquanto contemplamos abismados essa imensidão
que cala
entontece
renova o olhar
as emoções incontidas
no espelho da alma

Porto, VII - X - MMXIX

Leonard Cohen, The Future

domingo, 6 de outubro de 2019

"o silêncio das estrelas"

"Solidão, o silêncio das estrelas, a ilusão [...]
O que não pode ser dito, afinal
Ser um homem em busca de mais
Afinal, como estrelas que brilham em paz"
Lenine

 imagem: arquivo pessoal
                                   
à noite é possível perceber 
o silêncio das estrelas
e a quietude do outono

entrecortados amiudadamente
pelo som de uma folha 
que cai

ou das gotículas de água
perambulantes do ar
que vão se acumulando

nas folhas
nas pedras
nas janelas 

e se apresentam orvalho
no cenário transparente
da manhã

Sernancelhe, II - X - MMXIX

Lenine, O Silêncio das estrelas

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

a catadora de ilusão

"Você sabe o que é o encanto? 
É ouvir um sim como resposta sem ter perguntado nada"

Albert Camus .

 imagem: arquivo pessoal


seguia pelas ruas
juntando folhas caídas pelo chão
amiúde
sentia-se uma delas

sempre que se desapegava 
de um devaneio
de um projeto
de uma ilusão

seguia pelos sonhos
como quem se desprende
de uma quimera
de um desejo

de uma ficção

seguia pela vida
como um flâneur
porque momentos havia
que não havia o que fazer:

a não ser viver, viver!

Porto, IV - X - MMXIX

Miles Davis, Autumn Leaves


terça-feira, 1 de outubro de 2019

sempre amanhece

"Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies"

Adélia Prado


imagem: arquivo pessoal

É como se o silêncio mostrasse o eco interior:
Nada. 
Não tem nada para mostrar.
Não restou nada.
Nem angústia.
Nem ausência.

Nem lágrima.
Nem saudade.
Nada.
Dor?
Nenhuma.
Não tem nada para contar.
Mas sobra coragem para entender que a vida dobra em cada esquina.
E sempre amanhece.
--

São Luís, I- MMXIV



Ednardo, Ímã

b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...