terça-feira, 26 de novembro de 2019

a solidão dentro dos ossos

"Meus olhos têm telescópios
espiando a rua, 
espiando minha alma 
longe de mim mil metros". 

João Cabral de Melo Neto 
natureza morta com relógio: tarsila do amaral

a solidão se escondia dentro dos ossos
e o sangue que corria nas veias
pegou um atalho
para desaguar noutro  lugar

foi quando o cuco do relógio
à meia-noite
bradou doze vezes
hora da festa dos sonhos

eram tantos
tontos, tolos
acaçapados dentro dos ossos
milhões de anos

mas a passagem das horas 
abriu as portas da alma
arrancou a solidão dos ossos
e brindou com vinho tinto

a festa dos sentidos!

--

Parede, XIV - IX - MMXIX

Eric Clapton, Stones in My Passway



terça-feira, 19 de novembro de 2019

entre o pássaro e o céu

"em toda terra há céu, 
e em todo céu há pássaros"

Mia Couto e José Eduardo Agualusa em O Terrorista Elegante

imagem: arquivo pessoal (olinda)

entre o pássaro e o céu
há o azul
e os desenhos geométricos
traçados pelos voos

cada pássaro carrega a liberdade
nas asas
um sonho em cada olho

um desafio no horizonte
o equilíbrio em cada pouso
um novo canto
um mistério

um destino esboçado
vão guiados pelo sol 
adensando a luz com leveza

e o vento
revoluteando
nas amplas alças
da minha imaginação

--
Porto, XIX - XI - MMXIX

Azymuth, Linha do Horizonte







terça-feira, 5 de novembro de 2019

insignificâncias

"Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes
Prezo insetos mais que aviões. [...].
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos".

Manoel de Barros

                                          imagem colhida na internet, desconheço a autoria

eu gosto das matérias inúteis
das coisas vãs 
sem grande valor 
insignificantes

das estrelas piscando no céu
das folhas voando ao léu
dobraduras
papel de seda, crepom

das pedras energizadas
soltas no monturo
de uma casca de avelã no meio do caminho
de uma flor de beira-estrada

relegada, largada ao nada
na berma da grama
que ninguém cuida 
e sequer se importa

eu gosto daquela poesia
que alguém leu e lembrou de mim
da música que ninguém ouvia
mas agora faz sentido 

porque traz os movimentos
da dança desconectada
dos braços rodopiando
do estado de transe, que a tudo envolvia

eu gosto da labuta da formiga
do voo da borboleta
das pausas das abelhas
polinizando de flor em flor

porque a vida só faz sentido
se
conectada com as pessoas
e com tudo que existe no multiverso

por isso cada vez que sorris
e a tua boca encontra a minha
o mundo renasce
na curva dos teus lábios
--

Porto, V - IX - MMXIX

Cássia Eller, Luz dos Olhos






quinta do laurentim

"O jardim está brilhante e florido,
Sobre as ervas, entre as folhagens,
O vento passa, sonhador e distraído, [...]
Avança pelos caminhos
Até os fantásticos desalinhos."

Sofia de Mello Breyner Andresen


imagens: arquivo pessoal (sernancelhe)

castelo de pedras
bunker
lareira, lenhas, cestos e lãs
sinos de vento, selfie-portrait, quebra-luz
noite densa
calmaria
quietude em todas as línguas

via-láctea quase sem estrelas
quase
neon no céu
vila acesa
mochos, sapos, rãs, cigarras
sinfonia
virgínia woolf

o quarto de jacob
o quarto grande da cama de casal
o quarto da val
janela de madeira e vidro
cama de ferro
teto de carvalho
inesperada agitação

josés, manuéis, marias, anas, piedades
senhor, tende piedade desse coração
uma vida inteira
vivida na intensidade
entre a sexta e o sábado
ouvindo silêncios
interrompidos amiúde

pela voz imponente da natureza
quartzo branco, rosa, granito, mica,
filossilicatos, em perfeita divisão basal
feldspato
pedrarias
ao amanhecer do dia
caminhos floridos

aleatórios
rosas rosas, brancas, amarelas, buninas
ervilhas de jardim
flores roxas
papoilas brancas, amarelas
jarros também brancos
cenário ímpar

harmonia
borboletas multicolores
em movimento
céu azul com grossas pinceladas brancas
um mundo etéreo
rajadas de vento 
transparente

em contraponto, fulgor
luz cintilante
de um sol abrasador
pensamento ausente
tão distante, ardor
cadeiras na varanda
café

prosa leve, alegria
a paz dos anjos
quem diria
carvalhos, pinheiros, pinhões, figueiras
castanheiras, oliveiras, limoeiros, laranjais
abelhas, zunidos, melros, escaravelhos
cobras, lagartas, aranhas

tantos sinais
curiosa reunião
a celebrar uma história tão ancestral
uma pausa no fluir do tempo
feixes de luz
vista espraiada
no campo e nos sendais

a nitidez da situação
audição da respiração
a perscrutar a emoção
o farfalhar da brisa sobre as folhas
verdes, secas, amarelas
nem inverno, nem primavera
nem verão, nem outono

ou qualquer estação
a não ser aquela:
estado pleno de pré-paixão
penedos escurecidos
polidos pelo vento
recobertos de musgo
num canto esquecidos

o tom do dia 
era medido pelos ininterruptos pensamentos
a soprarem rumo à coimbra
com uma gama de variações na paisagem
oscilações entre o verde água e o castanho terroso
uma evocação do outubro
em plena primavera

os terrenos em retalhos
desenhando hortas nos quintais
donde brotam hortaliças e vegetais
traçando sem demora
uma rota imemorial
anelando desejos e corações
costurados em delicados fios

tecidos na ilusão.

--

Sernancelhe, páscoa de MMXIX

Nina Simone, Tell it like it is








b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...