a solidão se escondia dentro dos ossos e o sangue que corria nas veias pegou um atalho para desaguar noutro lugar foi quando o cuco do relógio à meia-noite bradou doze vezes hora da festa dos sonhos eram tantos tontos, tolos acaçapados dentro dos ossos milhões de anos mas a passagem das horas abriu as portas da alma arrancou a solidão dos ossos e brindou com vinho tinto a festa dos sentidos! -- Parede, XIV - IX - MMXIX Eric Clapton, Stones in My Passway
Mia Couto e José Eduardo Agualusa em O Terrorista Elegante
imagem: arquivo pessoal (olinda)
entre o pássaro e o céu há o azul e os desenhos geométricos traçados pelos voos cada pássaro carrega a liberdade nas asas um sonho em cada olho um desafio no horizonte o equilíbrio em cada pouso um novo canto um mistério um destino esboçado vão guiados pelo sol adensando a luz com leveza e o vento revoluteando nas amplas alças da minha imaginação -- Porto, XIX - XI - MMXIX Azymuth, Linha do Horizonte
"Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes Prezo insetos mais que aviões. [...]. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos". Manoel de Barros
imagem colhida na internet, desconheço a autoria
eu gosto das matérias inúteis das coisas vãs sem grande valor insignificantes das estrelas piscando no céu das folhas voando ao léu dobraduras papel de seda, crepom das pedras energizadas soltas no monturo de uma casca de avelã no meio do caminho de uma flor de beira-estrada relegada, largada ao nada na berma da grama que ninguém cuida e sequer se importa eu gosto daquela poesia que alguém leu e lembrou de mim da música que ninguém ouvia mas agora faz sentido porque traz os movimentos da dança desconectada dos braços rodopiando do estado de transe, que a tudo envolvia eu gosto da labuta da formiga do voo da borboleta das pausas das abelhas polinizando de flor em flor porque a vida só faz sentido se conectada com as pessoas e com tudo que existe no multiverso por isso cada vez que sorris e a tua boca encontra a minha
castelo de pedras bunker lareira, lenhas, cestos e lãs sinos de vento, selfie-portrait, quebra-luz noite densa calmaria quietude em todas as línguas via-láctea quase sem estrelas quase neon no céu vila acesa mochos, sapos, rãs, cigarras sinfonia virgínia woolf o quarto de jacob o quarto grande da cama de casal o quarto da val janela de madeira e vidro cama de ferro teto de carvalho inesperada agitação josés, manuéis, marias, anas, piedades senhor, tende piedade desse coração uma vida inteira vivida na intensidade entre a sexta e o sábado ouvindo silêncios interrompidos amiúde pela voz imponente da natureza quartzo branco, rosa, granito, mica, filossilicatos, em perfeita divisão basal feldspato pedrarias ao amanhecer do dia caminhos floridos aleatórios rosas rosas, brancas, amarelas, buninas ervilhas de jardim flores roxas papoilas brancas, amarelas jarros também brancos cenário ímpar harmonia borboletas multicolores em movimento céu azul com grossas pinceladas brancas um mundo etéreo rajadas de vento transparente em contraponto, fulgor luz cintilante de um sol abrasador pensamento ausente tão distante, ardor cadeiras na varanda café prosa leve, alegria a paz dos anjos quem diria carvalhos, pinheiros, pinhões, figueiras castanheiras, oliveiras, limoeiros, laranjais abelhas, zunidos, melros, escaravelhos cobras, lagartas, aranhas tantos sinais curiosa reunião a celebrar uma história tão ancestral uma pausa no fluir do tempo feixes de luz vista espraiada no campo e nos sendais a nitidez da situação audição da respiração a perscrutar a emoção o farfalhar da brisa sobre as folhas verdes, secas, amarelas nem inverno, nem primavera nem verão, nem outono ou qualquer estação a não ser aquela: estado pleno de pré-paixão penedos escurecidos polidos pelo vento recobertos de musgo num canto esquecidos o tom do dia era medido pelos ininterruptos pensamentos a soprarem rumo à coimbra com uma gama de variações na paisagem oscilações entre o verde água e o castanho terroso uma evocação do outubro em plena primavera os terrenos em retalhos desenhando hortas nos quintais donde brotam hortaliças e vegetais traçando sem demora uma rota imemorial anelando desejos e corações costurados em delicados fios tecidos na ilusão. -- Sernancelhe, páscoa de MMXIX Nina Simone, Tell it like it is