terça-feira, 10 de outubro de 2017

Sway

"A verdade é o resíduo final de todas as coisas".

Clarice Lispector em Onde estivestes de noite, p. 92

imagem: colhida na internet, desconheço a autoria

A bebida dançava dentro do copo
enquanto ela brincava com as pulseiras no braço.
Na vitrola Dean Martin cantava uma bela canção:
Sway.

Estava ali,
mas o pensamento perdido.
Bebericava o uísque entre indiferente e blasè e
movia o corpo languidamente.

Algum momento da vida deslizando pela memória.
E só.
Já não se adensava no ciclo findado.
Passeava nele como se estivesse em uma esplanada.

Não desejava nada profundo.
Nada além.
Não precisava mais ir tão longe,

Tudo era resolvido entre um gole e uma canção.
Para que perder tempo com o passado...
Murmurava de olhos fechados.

As ranhuras deslizavam encaixadas,
Nada por aparar,
nenhuma réstia de tempo.

Só aquele silêncio na alma,
a calmaria da madrugada
e o vento embalando

outra vez os sonhos.

Olinda, VIII - VIII - MMXVII

Dean Martin, Sway











sábado, 7 de outubro de 2017

Balada para uma praia triste

"Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio".

Hilda Hilst em Prelúdios-intensos para os desmemoriados do amor

 imagem: arquivo pessoal

A imensidão que era azulada
pesa agora chumbo
sobre as águas 

E tempestuosas

líquidas de saudades
se esparramam

Enfurecidas

sobre a areia
essas atrevidas

Gozadoras

alheias ao insulamento do mar
sequer ouviram seu lamento

Beberam tudo
insolidárias
insolentes

e depois de tanto
ficaram ali, imóveis
na solidão da praia

ouvindo a música dos ventos
que lhes cantavam uma balada triste.
naquela triste noite.


Olinda, MMXIII


Meena Cryle, It Makes me Scream  



quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Arriscar

"E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo".

Hilda Hilst em Toma-me





imagem: di cavalcanti (colhida na web)

Observe-me 
Cura essa cegueira de antinomia
Fuja desse casulo opressor
Sem que percebas
Quebrarão todos os seus sonhos.

Olha-me de novo

Transponha o medo
Amedrontado não conseguirás conduzir o barco
De que adianta o barco?
Se para transpor o Oceano é preciso  remar?

Ao desejo: mordaça.

Ao desejo: a lâmina cortante, o frio e a vela.
Mas apesar disso, descansa.
Ponha o seu coração dentro do cofre

E muda o segredo.

Não permitas que o roubem
Porque no mundo inteiro
Em todo o mundo, existe perigo.

Sabe o seu casaco de couro

E o seu chapéu panamá?
Os vi fugindo
Queriam lançar-se dos penhascos.

Eles também sentem desejos de arriscar.




Olinda, IV - IX - MMXVII


Beth Hart & Joe Bonamassa








segunda-feira, 2 de outubro de 2017

engodo

"Realmente não me importa ter que, um dia, começar tudo de novo.
 Estou me complementando aqui, eu acho, e depois não sei. 
Acho que a gente deve procurar viver o presente".
Caio Fernando Abreu in Cartas

imagem: Ismael Nery
 
Por dentro acontece um turbilhão, milhões de sensações novas, antigas, renascidas das vísceras - quase calcificadas, de tanto desistir de ser, por compreender a desnecessidade da exposição -, causadas pelo inesperado de um cataclisma.
Por fora uma aparente tranquilidade, já que exteriorizar o alarde interior não altera o curso de nada. Procede recorrer à uma pergunta banal: como pode caber dentro de alguém um sentimento maior que o mundo? Uma medida que não atende à nenhuma lógica matemática?
Mas existe, intangível e inexplicável, talvez uma grande ingenuidade, um devaneio aos olhos de quem não consegue ser a pessoa que aparentemente se apresenta, ou que desperta em outrem uma ilusão, que desorganiza calculadamente uma forma de existir, especialmente porque não passa de um engodo, uma falcatrua emocional.

É fácil perder-se, mas é do mesmo modo possível reencontrar-se, reencantar-se, posto que é uma qualidade que existe dentro do ser, que - à revelia da vontade, da cobardia de muitos aventureiros com a emoção alheia -, sobrevive e aprende com os próprios equívocos.

Ser prisioneiro de si é tão penoso e fatal quanto ser prisioneiro de alguém, o que se constrói nessa zona de dependência? Uma indagação para a qual nem sempre se têm resposta. Há sempre mais do que se sabe, do que se diz, nesse grande e inextinguível mistério, a que alguns chamam sentimento, paixão, amor; para alguns aprisiona; para outros, liberta. O ideal seria, repara bem, eu disse ideal, não o possível - existe uma grande distância entre um e outro -, ausentar-se de si, sair de dentro de si, enxergar-se de fora, e observar cada gesto, cada atitude, como quando se olha e atenta para outra pessoa qualquer, e aplicar as sugestões que certamente daria aquele que estaria fazendo, vivendo situação semelhante à sua.
O difícil é conseguir.
Falar, criticar, julgar, condenar, é suave e vulgar para quem o faz; mas custoso e penoso para quem é o alvo da censura. Todo mundo é um pouco vítima, de si e dos outros.

Olinda, XXX - I - MMXIV

John Coltrane, A Sentimental Mood.

domingo, 1 de outubro de 2017

Flor

"Eu nascia e meu coração era novo quando eu o via. 
Eu nascia, eu nascia, eu nascia. 
Agora um verso [... ] 
Ouvi um dia uma flor cantando e tranquilamente me alegrei".

Clarice Lispector em Perto do Coração Selvagem. p. 166

imagem: arquivo pessoal

Quando digo flor
não estou apenas dizendo uma
palavra
uma transmissão de ideia
um símbolo
uma imagem.

Quando digo flor
digo contexto
digo terra
semente
água
sol
digo tempo
digo processo
explosão
cor
vibração
digo vida
morte
e
digo de novo
flor!


Olinda, I - X - MMXVII

All your Love, Norah Jones

b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...