"... a gente fica fora de foco,
sem saber mais o que é
e o que não é.
Nem meu anjo da guarda sabe mais onde moro".
Clarice Lispector
imagem recolhida na internet
Observo-me e absorvo-me. Olhos fixos na imagem semi-desfocada que reflete no espelho quebrado; uma moldura de cimento contorna meu olhar e denuncia uma dureza que não existia ontem. Há uma dilatação inequívoca na íris, que transborda uma situação passada. Uma lembrança. Uma saudade. Um tempo que foi. E desistiu. Desisti. Desistimos. A boca circunvalada por um batom vermelho, bem vermelho, numa tentativa de colorir uma parte cinza da vida. Essa em que sua ausência me grita (e sobra em tudo), e grita alto, o seu nome. E eu finjo não ouvir (e continuo me enganando), porque eu inteira estou surda à provocação da sua existência. Esfrego a boca raivosamente. Esfrego a sua imagem que agora reverbera naquele vidro polido e metalizado, me olhando ironicamente por sobre os ombros, porque sabes o que tenciono ocultar, porque conheces a verdade que teimo em velar. E fujo, e escondo o meu rosto entre as minhas mãos esquálidas, e meus dedos finos e longos. Você é sempre essa nascente de sentimentos, imbricados entre as minhas vísceras, diluídos no meu sangue, amalgamados em meu ser. Um mistério, um desejo, uma raiva.
E então desavisadamente, a sua presença ameaça se fazer ainda mais presente, viro as costas ao meu apelo e saio. Lhe deixo lá, em algum lugar do espelho.
... Somos apenas dois estranhos agora.