o dia amanheceu normal como sempre, como todos os outros. pendências para acertar, resoluções externas, definições com o engenheiro,
checklist - é chegado o momento de finalizações, enfim -, a baritação, a cadeira, o compressor, a porta do laboratório, sala disso, sala daquilo... pós-almoço, tempo quente, quase derretendo e o convite:
- queres ir passear de lancha?
nem pensei, respondi na lata: quero! vou só checar uns telefonemas, dar umas orientações e estarei pronta.
o passeio, a travessia para a outra margem do rio, e uma parada naquela areia branquinha e fina, uma vontade de misturar-me com ela e descer rio abaixo... sentei-me à margem e fiquei contemplando o prenúncio do por do sol, as cores que se alternavam, uma paisagem quase comum, se não fosse pelo céu cinzento, raiado de laranja incandescente e o rio deslizando tranquilo naquele fim de tarde, e o pensamento longe, tão longe que quase não o retomo. a impressão que tive era que o vento sussurrava aos meus ouvidos, me inquirindo:
- e por que você não nada?
- ah, tenho medo de contrair esquistossomose...
- barriga d´água, doença do caramujo, "xistose".
- ah, já sei, uma pessoa morreu disso.
- mas eu já estou olhando
- não, a gente olha o rio é de cabeça pra baixo, ele fica mais bonito! quer ver?
me pus a plantar bananeira com o e. e de fato o rio parece outro. passamos a conversar naquela posição, perguntava-me tudo, e dizia-me tudo, falante, divertido, agradável, cheio de curiosidades, queria saber se eu gostava de sol, porquê eu tinha a mesma cor da areia, porquê meu cabelo era assim, assado, porquê eu falava diferente dele... milhões de indagações para um menino esperto de apenas seis anos de idade... e uma curiosidade do tamanho do mundo.
algum tempo depois, decidiu pular para dentro de uma fenda na areia, e ficou escavando a terra com as mãos, convidando-me para fazermos "castelos de pés" - cobre-se o pé com com areia úmida, e depois, devagar puxa-se o pé, sem desmanchar a tal construção, e vai-se fazendo vários destes, todos próximos, os tais "castelos de pés"-, achei divertido aquilo tudo, e pulei para dentro da fenda com ele e tentei edificar um feudo, insucesso total, ao contrário do garoto.
- eu agora vou tomar banho e jantar, minha mãe tá chamando, tchau, moça!
- tchau, e prazer viu?
recebi um sorriso farto como resposta, um aceno de mão e algumas "estrelas" puladas na areia...(ele todo rajado de areia, descalço, um calção surrado, pulou no rio, mergulhava, fazia a festa, diluía-se junto, fundia-se com a água, depois saiu e sumiu).
sentei-me outra vez à beira do rio, desta feita, no interior de uma canoa, e deixei os meus pés dentro da água, e brincava de fazer movimentos circulares com os pés, para ver o banzeiro na superfície. a.c. aproxima-se e pergunta se pode entrar no rio, respondo que sim, desde que ela não se afaste, afinal não conhecemos a profundidade dele, nem tampouco a força da correnteza, e além do mais já estava escurecendo...
enquanto me aquieto na canoa, olhando aquela natureza tão familiar, a pergunta chega repetidamente como um eco:
- ela já é batizada?
virei-me e deparei-me com uma menina de olhos vivazes, amendoados, castanhos, cabelos longos, e uma vontade louca de sair da sua mesmice relacional, conversar com uma pessoa desconhecida e finalmente contar as suas histórias, fortalecer a própria crença a partir do imaginário coletivo.
- sim, é, sim, por quê?
- porque se ela não for, ela não pode tomar banho às seis horas da tarde.
-e não? e por quê não?
- "porque senão a mãe d´água vem buscar ela"
- buscá-la, como assim?
- é que qualquer pessoa se não for batizada, não pode tomar banho às seis horas da tarde, a mãe d ´água vem buscar na hora, e nem vemos quando arrasta a pessoa pro fundo do rio e nunca mais a gente vê, sabia?
- sabia não... oxente!
- pois é, e a mão dela é fria e ligeira. eu já sou batizada por isso eu banho qualquer hora, mas a hora que eu mais gosto é dez da noite, a água tá morninha e boa! e também esse rio é cheio de cobras e jacarés...
(meti meus pés pra dentro da canoa e fiquei ali observando aquela menina, cheia de vida, conversadora, contando os "causos", as histórias que sua avó, mãe, as pessoas da comunidade, contam/contavam e a força da oralidade, ficamos conversando sobre tudo, ela estudava em dois turnos, duas séries diferentes, "só por causa de uma matéria - matemática" - ; como se constrói uma pipa; o seu cão que nadava léguas naquele rio; e que as pessoas diziam que o irmão comia cobra, e ela rebatia veementemente essa acusação, ele apenas matavam-nas, tratavam-nas, deixavam-nas limpinhas, e só guardava a gordura delas. mas que ela gostava mesmo era da carne de jacaré; e que em sua casa havia quatro tatus, mas um fugira, outro a família comera, um terceiro morrera de raiva por ter sido aprisionado, e o quarto estava lá, e era ela quem cuidava, alimentava, etc...)
- mas olha, dona, sabia que se alguém levar para sua casa os ovos de uma cobra, ela vai buscar na sua casa, à meia noite? a pessoa pode morar onde morar, mas a cobra vai atrás.
- eita, é mesmo? sabia não... mesmo sem ter o endereço a cobra vai atrás?
(confesso que num ímpeto quase indaguei se a cobra tinha gps)
perguntei-lhe seu nome: a., sua idade, o que mais gostava de fazer, etc. ficamos proseando com bastante entusiasmo, até que ela se despede, ia ajudar a mãe na banca - vender mingau de milho, munguzá -. e aproveitei para tirar a.c. da água, e subir para comer um delicioso peixe frito, acompanhado daquela "cerva" geladíssima.
o céu estava estrelado, luzes difusas na outra margem, temperatura amena, e na mesa, uma conversa boa, e ótimas companhias.
quando já estamos nos despedindo, avisam-me: "a., tá perguntando se a senhora não quer um copo de mingau"? eu já nem podia mais ver comida na minha frente, mas como rejeitar uma oferta tão carinhosa como aquela?
- sim, claro que sim, com muito gosto!
nessa hora fico toda "cheia de dedos", e se eu perguntar quanto custa, será que a menina ficaria ofendida? perguntava-me, e respondia-me imediatamente: sei não, será? decidi arriscar e perguntei. docemente ela disse que não precisava pagar não, ela estava me dando. mas como ser justa diante de uma situação dessas? afinal ela não auxiliava a mãe por lazer, não vendiam mingau de milho pra fazer graça, mas por necessidade óbvia e eu não queria deixar de ajudá-las. então combinei com ela, que naquela noite eu pagaria, mas que na próxima vez eu aceitaria a cortesia. ela então concordou e saiu acenando.
e eu fiquei fazendo mil conjecturas acerca da vida, dos encontros, e do quanto tudo pode ser simples, se quisermos...
sei lá, saí de lá e fiquei escutando o palavra cantada - trilhares...