domingo, 11 de outubro de 2009

Cabo Verde nha cretcheu

Mindelo, deslumbrada com a cor do mar

Em Lisboa já se percebia a diferença, não apenas na cor da pele da maioria dos passageiros, mas especialmente pelo sotaque e pela língua falada. O crioulo tem uma sonoridade ímpar, é canção e afeto em forma de comunicação, é por si uma língua carinhosa... A viagem transcorreu tranqüila, eu estava muito ansiosa e ao mesmo tempo sonolenta e ficávamos revezando o colo, ora eu deitava em nhá cretcheu, ora era ele no meu... O céu estava bem estrelado, entretanto em algum ponto as nuvens estavam carregadas e eu via os relâmpagos e isso me enchia de medo, e encostada nele eu adormeci de novo... Até que num desses momentos de despertar preguiçosamente, avistei luzes lá em baixo e eufórica falei: ali está, chegamos a Cabo Verde, e foi tão esfuziante essa manifestação que praticamente despertei todos os passageiros (vergonha danada!), e ele entre gozo e riso disse-me: - mas como? Só se passaram 2h de vôo, miúda, e são mais de 4h, estamos é sobrevoando as Canárias! Envergonhada enfiei-me em seus braços e ficamos assim até quando o sono nos pegou outra vez e finalmente, finalmente aterrisamos na ilha de Santiago, mas precisamente na cidade da Praia, capital de Cabo Verde (conheço apenas dois arquipélagos, mas esse é deslumbrante, talvez o lugar mais paradisíaco que meus olhos já viram). Preparamo-nos para a longa noite que viria, afinal, estávamos apenas começando nosso périplo (tomamos um táxi no Porto, de lá um avião para Lisboa, depois outro para Santiago, mais um para São Vicente, outro táxi, e finalmente a barca para Santo Antão, nhá ilha por escolha).
Porto Grande, Mindelo - São Vicente


Ao amanhecer embarcamos numa pequena aeronave (confesso que tive medo, mas a emoção de estar em África, em Cabo Verde, superava meus temores), estava completa, dois times de futebol embarcaram, iam participar de um importante jogo em Santo Antão - até fui ao estádio torcer pelo “meu” time santoantonense, momento em que já se previa como seria o São João, durante o intervalo da partida, assistimos a uma apresentação de “colá Son Jon”-, e que delícia, assim que alçamos vôo, fomos cumprimentados pelo comandante: em crioulo, depois em português, inglês e francês. Sempre opto pela janela, não gosto de conversar durante os vôos, isso me tira a liberdade de silenciar, mesmo estando com nhá Cretcheu, fiquei com o rosto colado na janela da pequena aeronave, olhando estarrecida a beleza daquela circunferência alaranjada que disparava raios por toda a extensão do céu e do Oceano Atlântico, era o sol que despontava dentre as nuvens e nos brindava com sua cor viva...
Em São Vicente, passeamos por Mindelo como quem estava a abrir as janelas do céu, reencontramos Elterzinho, à beira da praia da Laginha e colocamos a conversa em dia, falamos dos projetos, dos sonhos, das vivências no Porto e da saudade que ele sentia de todos e de tudo... Fomos caminhando até o mercado da cidade (eu particularmente adoro os mercados, acho que lá está a vida da cidade).

cavalas salgadas e secando ao sol

Hora de almoçar, dessa vez o encontro foi com o Augusto (amigo de longa data de nhá cretcheu e de toda a família), saboreamos peixe com legumes, prato típico da gastronomia local, depois um café, engolido às pressas, afinal era hora de pegarmos a barca, ou então só no dia seguinte poderíamos viajar a Porto Novo, e estávamos doidos para aportar em Santo Antão... O balanço da barca não me causa enjôos, e fiquei deslumbrada com a paisagem, enquanto nos afastávamos de São Vicente, via a cidade noutra perspectiva, observando a baía do Porto Grande e a longa faixa litorânea que margeava-na, emoldurando com o azul do mar, esse belo quadro natural... As águas são de um azul intenso, entrecortadas por ondas tão brancas que mais parecem nuvens espelhadas do céu... Quase uma hora de travessia no Atlântico e os pensamentos carregados livres pelo vento que bailoçavam meus cabelos, eu estava na África, pensava feliz, Cabo Verde, Cabo Verde dos meus sonhos, da Cesária Évora, de Ildo Lobo, de Tito Paris, de Paulino Vieira, dos Ferro e Gaita... Cabo Verde, que já nos havíamos adotado pelos laços do amor.
E do meio do oceano eis que surge um ilhéu, o Ilhéu dos Pássaros, e feito criança que está a descobrir o mundo, percebo uma casinha no topo do acidente geográfico e além de fotografar, faço mil perguntas sobre as condições de morada naquele inóspito lugar...
Ilhéu dos Pássaros

E o tempo passava preguiçoso, em Cabo Verde, o tempo tem outro tempo, temos tempo para fazermos o que desejarmos, não somos engolidos pela pressa das grandes e barulhentas cidades... Alá, ali está Porto Novo, e as lágrimas me acodem, choro em silêncio, emocionada, essa pequenina cidade é imensa em meu coração, Porto Novo que eu já conhecia há tanto tempo sem jamais ter lá estado, agora estava a se materializar diante de mim, com suas casas cor-de-rosa, e árvores serpenteando a faixa costeira... Ao aproximar-nos vejo mais casinhas, na cor cinza (construções em fase de acabamento), e o coração dispara, desço da barca saltitando sem me dar conta da altura da rampa, e perdi-me entre as pessoas que saíam da barca com suas malas, bagagens & sonhos...
Uma das primeiras imagens de Porto Novo
A interação com a família foi tão instantânea e natural que parecia que nos conhecíamos há décadas e senti-me acolhida, acarinhada, aquela era (e é) a minha família também, minha família caboverdiana. A farra dos presentes é superada pela emoção e alegria do encontro, milhões de risos e perguntas e desde então a casa estava sempre cheia, a família é imensa, até aprender o nome de toda a gente, já estávamos a voltar... Como eu, são todos muito musicais, a música não pára, é um elemento marcante na família, numa dessas noites estreladas, as crianças a brincarem na rua – sim, em Cabo Verde, criança é criança e brinca na rua e vive seus mistérios e descobertas – e em pouco tempo, uma festa acontecia, porque o ritmo que estava a tocar era o funaná e é impossível ficarmos estáticos e indiferentes a ele, e a família numerosa já festejava a vida, todos dançando e a alegria tomava conta do ambiente, a música é uma forma de festejar, agradecer e saudar à vida...
Ganhei essa árvore de presente
Cabo Verde em absolutamente nada lembra a Europa, é de fato outro mundo, lá não existe apenas a natureza “exótica”, não no sentido de estranho ou ádvena, mas de beleza incomum, incomparável. Não existe uma arquitetura que ostente o poder imperialista, mas a beleza que emerge das coisas simples, da delicadeza humana, em Cabo Verde há o que não existe mais em quase nenhum outro lugar do planeta: a humanidade, a solidariedade, a fraternidade, a irmandade. Em Cabo Verde percebe-se o forte sentido da família, do amor que une, que cuida e que ajuda. Há o respeito pelos mais velhos, escuta-se a sabedoria dos antigos; tios cuidam dos sobrinhos; primos ajudam-se entre si; avós têm seu lugar de destaque; netos cuidam e são cuidados; as famílias são numerosas e quase que invariavelmente uma pessoa une as famílias, porque o laço consangüíneo se não é entre todos, é de um que é do outro, que por sua vez veio daquela outra família e acabam sendo todos familiares uns dos outros, acho que nem mesmo a antropologia ou sociologia da família explicaria isso...

Amei essa imagem parecia uma cena de filme
Um país incrível, com uma história incrível de resistência, de luta, de sobrevivência, não apenas em função da natureza inóspita e muito seca, como também o uso da língua crioula, que foi uma forma de comunicarem-se, desde o século XV, para que o branco português não compreendesse o que se passava. Como todos os países dos PALOP (Países Africanos com Língua Oficial Portuguesa), Cabo Verde tornou-se independente (!!!!!!!!!!!!!!) de Portugal, na década de 70 – “Em Cabo Verde é constituído um Governo de transição, composto por caboverdianos e portugueses. A 30 de Junho de 1975 foi eleita uma Assembléia Constituinte, esta Assembléia proclamou a Independência da República de Cabo Verde a 5 de Julho de 1975” - destaque para o grande herói nacional, Amílcar Cabral.
Conjunto de casas na Av. Amílcar Cabral
Fiquei alumbrada durante todo o percurso desde Porto Novo até chegarmos em Paul, uma das aldeias de Santo Antão, de um lado a terracota das montanhas e do outro, o azul do mar, e eu ali em meio a mais bela natureza que já visitei. Comecei a dar gritinhos de encantamento desde Janela (uma das tantas povoaçõs do concelho do Paul),
As montanhas de Cabo Verde - Paul - Santo Antão

as casinhas dependuradas nas montanhas e o mar a chicotear as encostas, os coqueiros, os pés de papaias e o canavial subindo e descendo as montanhas e aqui acolá, despontavam flores vermelhas colorindo o verde das folhagens e o marrom das montanhas.

Paisagem de encher os olhos

O arquipélago de Cabo Verde é de origem vulcânica, e é constituído por 10 ilhas: Boa Vista, Brava, Maio, Sal, São Nicolau, Fogo, Santo Antão (minha ilha), Santiago, São Vicente e Santa Luzia (esta não é habitada). Fomos visitar parte da família, conheci Nhá Chica, Nhá Rosa, tio Júlio, e tantos primos que me confundi, hora de comer pouco, porque em cada casa que chegávamos, tínhamos que comer (acho que engordei uns 20kg), não comer seria um acinte....
Enamoramento explícito pelas montnhas de Cabo Verde

E era um descobrimento fascinante subir e percorrer as montanhas em Paul, e deparar-me com aquela beleza absurda de natureza semivirgem. Nas pequenas localidades, as crianças quando passavam por nós, cumprimentavam-me em francês (ensino obrigatório das escolas, ao lado do inglês), e depois comentavam admiradas entre elas, ora em crioulo, ora em português: “mas ela é tão branquinha!”, e eu ria divertida...
Filomena mostrando a plantação de inhame
Estar em Cabo Verde era estar num pedacinho do Brasil, não pelo Brazilim, típico da ilha de São Vicente - onde se deu um importante movimento literário, chamado Claridade, “movimento de emancipação cultural, social e política da sociedade caboverdiana”- um carnaval que se assemelha ao do Brasil, considerando as dimensões dos dois países, claro; ou pela seca que assola lá tanto quanto cá, o clima e solo parecidos com o nordeste brasileiro; mas especialmente pela paixão que o povo caboverdiano tem pelo Brasil, quando descobriam minha nacionalidade o sorriso e a satisfação ficavam maior que o rosto e o coração, e nos chama/vam de país-irmão, é de uma emoção e de uma lindeza que enchia meu coração de orgulho e emoção; mas é preciso que o povo do Brasil saiba mais de Cabo Verde, ao menos uns 50% do tanto que eles sabem de nós. É uma paixão explícita nas camisas da seleção brasileira (quase a totalidade do povo caboverdiano tem uma camisa da canarinha), nas sandálias havaianas com a bandeira do Brasil, nas lojas de roupas (a maioria comprada diretamente em Fortaleza), nas novelas ou nos noticiários das emissoras de tv´s brasileiras, o Brasil é muito querido naquelas fantásticas Ilhas Crioulas...
Canavial nas montanhas
Passar o Son Jon em Cabo Verde tinha muitos significados para nós, era a necessidade de ver a vida crescer e mudar a história, era a ruptura e a construção de outra fase, de um ciclo mais maduro da vida, hora de trocar as imagens emocionais e psicológicas, e dar vazão à plenitude daquele momento em que a vida se manifestava em suas múltiplas dimensões. Era buscar a imagem de São João Batista (de acordo com a crença local, neste ano, o harmatão estava insuportável – e estava mesmo -, porque alguém foi cozinhar em uma das capelinhas da via crúcis, do santo em tela, e incendiou o telhado de palha e São João, insatisfeito, mandou o vento mais forte e mais quente, até que recuperassem a casinha),
Procissão de "Son Jon" Batista
e de quebra ganhei o harmatão, sim, vivi o famoso vento do deserto, com sua temperatura quente e as correntes de areia que nos chegavam do Saara; o som do lestada que embalava nossas noites de céu salpicado de estrelas e reuniões familiares no quintal da casa ou na porta da frente, compartilhando com todos a boa roda de prosa e os causos contados pelos membros da família, e o suco gelado de “tambarindo”, oferecido pela vizinha; era comer no desejum matinal a saborosa cachupa (o principal prato da culinária caboverdiano, feito à base de feijões, milhos, carnes e legumes), carinhosamente feita por Filomena (além do amor e do carinho que sentimos uma pela outra), doce de papaia (idem), os pontches (de coco, de mel, de mancarra, de chocolate, de manga, de morango, feitos com grogue – bebida alcoólica extraída da cana-de-açúcar, semelhante à nossa cachaça – e frutas). A hospitalidade da Iaia, o carinho da Rosa, da Cinda, da Guta, da Júlia, do Tony, dos irmãos de nhá cretcheu e de todas as primas e primos.
Grogue, bebida alcoólica extraida da cana-de-açúcar
O tempo estava muito seco e insuportavelmente quente, a proposta era de irmos até Ribeira das Patas, buscar a imagem do santo e acompanhar a procissão até a capela no centro da cidade. Confesso que não fomos, porque não tivemos condições, o tempo não ajudava e fiquei entristecida com meu despreparo. Decidimos que iríamos até à altura do cemitério e seguiríamos com os demais até a igrejinha que todos os anos recebe a imagem do Santo Padroeiro de Porto Novo, assim fizemos, percorremos toda a av. Amílcar Cabral (a principal da cidade), mais de 30º de temperatura, um sol tórrido, o batuque dos tambores, pessoas de todas as idades pagando promessas, outros renovando, ou fazendo pedidos pela primeira vez, é um misto de religiosidade com festa profana, quando dançam o colá, a cidade fervilha, e no caminho ofertam comidas e grogue para suportar o trajeto que é longo e difícil, em função do calor absurdo... A romaria emociona, porque a fé dessa gente é tangível e inquebrantável, muito semelhante ao nordestino...

Recriação das aldeias do interior da ilha de Santo Antão
A cultura caboverdiana é caracterizada pela mistura, pela mescla de elementos da cultura portuguesa e africana, de acordo com os estudiosos não se trata de uma soma, mas sim, “duas culturas que convivem” entre si, “resultando em um terceiro produto, totalmente novo, em função de um intercâmbio iniciado há mais de 500 anos”. Graças a posição estratégica do arquipélago, durante os “descobrimentos” e as Grandes Navegações, tornou-se um “ponto de escala obrigatório para navios que se deslocavam de e para o atlântico sul”. Servindo também de entreposto comercial quando os navios portugueses iam para o Brasil, naturalmente.
A água do mar com a temperatura quentinha
Além da música, com os mais diversos ritmos: funaná, morna coladera, batuque, kizomba, ou zouk (que é também de Angola), Cabo Verde tem destaque nos seus poetas: Eugénio Tavares, Corsino Fortes, João Vário (pseudônimo do neurocirurgião João Manuel Varela), Manuel Lopes, Baltasar Lopes, Ovídio Martins, Sérgio Frusoni, Onésimo Silveira e Mesquita Lima, entre outros.
Jogando bola com a meninada, cheia de estilo
Sonhei e vivi Cabo Verde, e desse sonho lindamente realizado, ficou a certeza (e o desejo) que voltarei tantas vezes mais eu possa, deixei um pedaço de mim lá, e trouxe outra metade em mim, comigo.

Dedico esse texto carinhosamente às seguintes pessoas: Nelson, Misselene, Zuleica, Iva, meu pequeno príncipe Diogo, Marta, Lito, Zé, Jovem, Maria João, Monalisa, Eloísa, Jorge, Liliana, Franciso, Fatú, Rafaela, To, o pequeno Gonçalo, e o Jota, além das citadas nele.
Quem me conhece já sabe que a música não poderia ser outra que não a do Paulino Viera, Prece Di Um Fidjo.
Porque eu amo essa música e foi a que meu coração e minha boca cantaram, quando cheguei em Santo Antão. Cantemos juntos:

Alô alô Cabo Verde alô/ Terra pôbre ma chei d'vivença/ Uvi ess prêce dum fidjo di bô/ K'ta bem longe ma ka ta esquece bô/ Dia ta bai/ Dia ta bem/ Tempo ta passa/ Mi sempre longe, d'nha tirrinha/ Ma mi m'tem fé, sim m'tem fé,/ De ba vivê la/ Nimque ê nhas ultmé dia/ La m'cré oia/Nem ké sô mas um vez/ Passaj d'ône, carnaval, sanjon,/ M'crê vivê junte ma nha pôve/ Dança cola batê pé na tchon/ La tud'cose ê mas sabe/Tud'cose ê mas doce/ La é um sabura...


b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...