terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

"teu corpo meu diário"


"Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago"

imagem: Roberto Lúcio de Oliveira

é na carne que te inscrevo versos
livre de vestes
despudorada
à mostra tua cálida flor

esse altar sagrado
reluzente
esplendor
minha vontade azáfama

minha pressa  de vida
pulsão presente
minha urgência de eternidade
minha pungente ambição

- chama acesa nos gemidos -
cobiça tracejada na carne
lava incandescente, pelve em brasa
vermelho fogo calor de vulcão

pele contra pele
- resvalando por entre pernas as nossas mãos -
olhos reluzentes em anoitecidos clarões
nossa escrita efeméride, doce insanidade

apago com a saliva e reescrevo rasuras
- voragem e precipício -
minha fome de mundo
o diário da nossa paixão!

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Olinda - XIX - IV - MMXIII

Maria Bethânia, Mensagem



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

nunca mais aquela noite terminou

"é só porque me chamo 'eu'. Isso é tudo que você sabe sobre mim,
 mas é suficiente para que possa sentir-se levado a investir
 parte de si próprio neste eu desconhecido"
Italo Calvino em Se Um Viajante Numa Noite de Inverno. p.22

imagem: L. B. Vicente

uma promessa incumprida
no ardor de uma combustão
encontrou na noite vadia
naquela via em contramão

o avesso da sua fome
o outro lado da ilusão
seu eu no outro eu
o sonho na palma da mão

e diante do esplendor
de um momento inusitado
naquele jardim encantado
em que o mágico a encontrou

ficou do passado esquecida
sequer o futuro questionou
naquele presente infinito
refugiou-se nas horas fantásticas

e nunca mais aquela noite terminou!

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Olinda, XXIII - I - MMXIV

Zelia Duncan, Tudo sobre você

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

exaurida

"E respeito muito o que eu me aconteço. 
Minha essência é inconsciente de si própria 
e é por isso que cegamente me obedeço".
Clarice Lispector in Água Viva. p. 29

henry fuseli (Johann Heinrich Füssli) - pesadelo

Volto no tempo e nos lugares em que fomos felizes, e nada resta, a não ser os vultos, os espectros daquilo que fomos, e os vãos, os buracos, os espaços vazios de tudo que um dia fomos e sonhamos, só abismo, só silêncio, só silêncio e morte.

Me ultrapassei nesse sentimento, fui além de mim, além de onde eu deveria ir. Mas como saber onde parar, se perdi a noção de medidas? Não tenho mais para onde ir.

Ligo o rádio porque não quero me escutar, prefiro ouvir qualquer outro  barulho, qualquer  coisa me afaste de você, que me leve para bem distante de tudo o que sinto. Que me esvazie que me esprema e que transforme vísceras e sangue, em vento ou nuvem, e carregue para bem distante daqui.

Não quero mais os espasmos do mundo; não quero mais nem antes, nem depois; não sei bem o que sou ou o que sinto agora. Tudo é contradição, ora fogo, ora solidão; ora dor, ora emoção. Coisas que não sei dizer.

Estou exaurida. Estou esgotada. Quero dormir e acordar daqui a dois mil anos.

Olinda, XXXI - I - MMXIV

Miles Davis, Tenderly

b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...