"A hora de viver é um ininterrupto lento rangido de portas que se abrem continuamente de par em par".
Clarice Lispector
imagem: max ernst
E a vida insiste em me chamar. enfio a cara no travesseiro - como a avestruz encosta o pescoço e a cabeça no chão - para que a luz da manhã que inside no meu quarto não me desperte.
Inútil porque o barulho do dia que acorda, me acorda também.
O som das buzinas dos carros, a cortina roçando na janela, num balé soprado pelo vento, Tupã latindo, os pássaros cantando... Escuto essa sinfonia da alvorada desde às 6:00h, e resisto bravamente em minha cama o sagrado momento de começar o dia.
Mas "lá vou eu em meu eu oval", construir o meu bom dia - se desejares, desejo que construa o seu também - !
"E Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita. E Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Deus chamou à luz DIA, e às trevas NOITE".
Gênesis, 1:3
imagem: arquivo pessoal
Então fez-se um clarão no céu, e um rasgo dividiu o dia, da noite.
Entre as nuvens de um cinza esmaecido, o inesperado surgiu, e abriu-se em copas o firmamento e, do espelho de águas refletido, emergiu a criação: lixo ressignificado em luxo; cores e magia; luzes e fantasias, era uma árvore de natal no Recife, que anunciava diferentes formas de proteger (a mãe) Gaia, das matérias inorgânicas que produzimos como também da nossa ignorância.
Consciência, atitude e assunção, sejamos resonsáveis pelas nossas ações, pede a terra que agoniza.
Mudança de pensamento e comportamento, transformemos nossa postura, antes que o Planeta morra, não esqueçamos: a extinção é irreversível, sem a natureza, não existimos.
Pensemos mais, vamos agir mais, em 2021, sejamos melhores para nós mesm@s!
Árvore de natal feita de garrafas pet e cedês "piratas", nas águas do Rio Capibaribe, um dos tantos que corta a cidade do Recife.
Nos iludimos pensando que o coração é do lado de dentro.
É nada!
Ele é mesmo é do lado de fora.
Grudado na gente como uma planta parasita.
Algumas vezes sangra em carne viva.
Como tem sangrado em muitos.
Uma inesperada Pandemia nos assola e trouxe consequências: distanciamento social, pânico, insegurança e ansiedade nas famílias de todos os Continentes.
Vivemos uma onda de oscilações, perdas e danos.
Estamos nos últimos dias de dezembro, de um anômalo ano, em que um vírus assustou o mundo todo.
Escrevo.
Escrevo como um registro do que se passa agora.
Escrevo como uma forma de expurgar o medo e o imponderável que nos rondam.
Não estou a ver as horas, porque não quero saber que horas são, mas penso que adentramos na madrugada, é o que me diz a quietude e o vento.
Talvez esse texto, no futuro, dirá melhor o que estamos a viver.
No meu país, já se anuncia o fim da primavera. Encontramo-nos às vésperas do natal, um natal jamais imaginado e diferente de tudo o que se pensou.
Um natal de afastamento, sem muito brilho e algazarra nas ceias, com as famílias isoladas, apartadas, entristecidas e sorumbáticas, mergulhadas em tensões e silêncios.
Muitas a viverem dias de dor, de luto, de tristeza e de despedidas inesperadas. O horror.
Mas o momento nos ensinou muito sobre solidariedade, finitude, simplicidade, o retorno à Natureza e a desnecessidade de planejamentos e excessos.
Além de nos lembrar que a vida é agora, é hoje, já.
Vivamos o instante!
Não deixemos o tempo nos arrastar por caminhos e estradas que não são nossas.
Amemos nossa família, nossos amigos.
Deixemos o coração se expandir rumo ao infinito, porque o mundo está um caos e, nós também.
Inventemos um solstício que nos deixe com dias longos cheios de luminosidade.
Cuidemo-nos e aquietemos o espírito, vai passar. Vai passar.
viver às custas dos sentidos faz sentido? como acreditar neles? e se num rompante os sentidos se rebelarem e burlarem o que cada sentido nos faz sentir?
posso beber com os olhos? se repentinamente eu engolir com os ouvidos? pode o meu olfato escutar sons? acaso é proibido tatear com a língua?
tudo é convenção até a própria convenção.
tatear é a materialidade do toque (?) como eleger (os) sentidos se todos somos plenos de sentidos se o mundo e suas representações nos assaltam singular e pluralmente?
todo o tempo o tempo todo somos poros ossos carne órgãos sentimentos
"Un beau jour c'est l'amour et le coeur bat plus vite,
Car la vie suit son cours
Et l'on est tout heureux d'etre amoureux"
imagem: arquivo pessoal
uma borboleta?
uma flor?
a nossa imaginação dá a medida do nosso (des)conhecimento?
qual é o limite de uma mente que sonha?
o sonho de cada um é do tamanho que cada um deseja?
sonho é ilusão?desejo é transpiração?onde está o fio que desconecta um do outro? em qual ponto do caminho a distraçãodestraçou o esboço,apagou o desenho,arrancou a seta,e deixou em abandono,o que um dia foi um grande plano?resistir,insistir porque,todo tempo é momento de acordar,avançar,pular as ondas,reconectar e amar. --Sem local e sem data.
eu vi quando os raios laranjas atravessaram o ventre do dia e as últimas estrelas sumiam na claridade solar e as nuvens encobriam a lua minguante
que esquálida, fina desaparecia por entre aqueles vapores condensados que se movimentavam em vários sentidos formando todo tipo de imagens enquanto eu tentava decifrar quem era quem
naquele mundão infinito: cirrus, stratus ou cumulus se lá em cima a atmosfera estava fria cá embaixo começava mais uma indefinição diurna
enquanto centelhas de luz incidiam nos cristais de gelo
como espadas de luminescências cortando a claridade
e eu alimentava a minha pareidolia
múltiplos sons, cheiros e outras vozes que brandiam
anunciavam que já era hora de sair do transe madrugador
esquecer o indecifrável torpor
abrir as cortinas da vida
ouvir mendelssohn
despertar na alma a alva da manhã
regar as plantas
dar comida ao gato
meditar
fazer café
alegrar-se em ver o estrear de um dia inteirinho novo
atravessar o que não faz sentido e
aproveitar o acaso(?)
Olinda, X - XII - MMXX
Mendelssohn, Songs without Words Op. 19 No. 1 (Gortler)
abri a página no nº 57 não havia nenhuma mensagem folha limpa de um breviário revestido de ausências hiatos e reticências
porque pairavam sobre todos os tempos outros tempos tão loucos, indecifráveis a noite, o silêncio e as estrelas mais um dia mais outro se seguia
a página 57 estava à espera da escrita do rabisco dos desenhos e espirais do tempo feito molas soltas deixadas aleatórias sobre a superfície do caderno em sépia
que ela carregava pela vida afora na vida que foi possível que brilhava amiúde que vibrava também adminutim entre tréguas e entregas
naquela página 57 escreveria sobre vinhos nada de iras francesinhas, risos, alegrias do momento de uma solenidade em que se evocava a distância transatlântica, continental dentro de um projeto pessoal
que alimentava e recriava um mundo fechado a sete chaves envolto no passado daquele tempo guardado em júbilos de cetim naquela avidez de ternura que nunca teve fim
a pagina 57 carregava um simbolismo algumas cartas não enviadas em fitas atadas um retrato imaginado o beijo imortalizado na efígie em branco e preto um antigo desejo eternizado
é hora do sonho devolva-me a palavra porque hoje eu vou escrever um novo canto para renovar os fonemas as cores o riso e gorjear com os pássaros lá vem raiando a futuridade devolva-me a palavra porque o amanhã já se instalou silencioso nas entrelinhas dos caminhos devolva-me a palavra porque neste presente momento o que nos resta é ressignificar: o tempo os dias as coisas e respirar
por que devo dar-te um nome se nomear exige a presença do nomeado da coisa que coisa és? para que limitar em um nome tudo aquilo que em mim provocas se ainda nem lhe conheço e apenas vagueias entre os desejos sem formato cheiro ou dor
nos meus desertos insones
para que devo dar-te um nome se nada sei sobre amor sobre o rosto sobre o corpo ou pudor que coisa és? diz-me porquê atiças e revolve a poeira escondida entre os meus sótãos na terra derramada do jarro sem flor que coisa és? quem és? diz-me agora: és tudo ou nada! -- Lisboa, VI - IX - MMXIX Chet Baker, I' Am a Fool to Want You
"Aos olhos nus, não passava de um chuva repentina,
mas aqui dentro soava como uma tempestade".
Clarice Lispector
imagem colhida na internet, desconheço a autoria
Já não sei mais se espero a madrugada, espontaneamente, se de caso pensado (ou sono perdido), ou ainda se ela reside em minhas esperas, que até mesmo eu, desconheço o que esperar.
Mas espero a madrugada. E a madrugada me espera também.Temos um encontro marcado, mudo. E nunca nos atrasamos.
Ela chega. Muitas vezes com uma chuva fina, miúda, cheia de brandura.
A cidade está silenciosa, não se escuta nada além do chuvisco que desliza de forma macia e suave pela vidraça da minha janela, criando visões e sensações particulares.
Penso nos demais seres madrugadores que "habitam essa terra desolada" em que se transforma a cidade, neste pré-alvorecer. Estarão vendo o mesmo céu? Ouvindo o mesmo som da chuva? Chove também para eles? Estarão protegidos?
Entre tantas indagações, vou à cozinha, faço um chá de hibisco, volto devagar e me planto outra vez a observar o que é possível desde o lugar em que estou.
Pequenos borrifos de água formam uma cortina transparente, numa ilusão de ótica, uma espécie de código de barra inesperado.
Reparo na iluminação da minha rua, luzes neon e de mercúrio se misturam sobre os telhados das casas e rebrilham no asfalto, agora molhado.
Espicho os olhos para além dos edifícios que ladeiam as ruas e percebo que uma tonalidade vermelha vai adquirindo outra nuance, ao se projetar por sobre a copa das árvores. Como se do alto, caísse uma tintura para matizar a densidade da neblina, misturando-se aos revérberos das luzes e do sereno.
Pequenas antenas parabólicas, fixadas na cobertura do prédio defronte, parecem cegonhas pousadas, descansando em seus ninhos, como se a madrugada anunciasse o fim do expediente, a hora da inatividade dos voos, do adormecimento.
Dirijo-me então ao quarto, tentando não achar que estou desperdiçando noites.
Ponho o Miles para tocar, apago a luz, fecho os olhos e me deixo levar pelas notas diferenciadas do seu trompete magistral.
Daqui a pouco é outro dia.
Apesar da mesma rotina, tudo se renova, tudo espelha o novo momento desse dia, que o tempo trouxe, para ser mais um contabilizado no calendário dos homens.
era de dentro da exaustão que brotava aquele eco desconhecido que assombrava o vazio da noite que trazia o peso de todas as lágrimas derramadas por toda a humanidade de todas as coisas humanas que causavam estranhamentos aos deuses que espécie alienígena é o homem, pensavam mas os deuses abandonaram os homens em seus próprios flagelos em suas lutas e ruínas e os encarceraram na ilusão do poder uma cobrança e um fardo do pecado original mas os deuses estão mortos. e os homens ao léu os destinos definidos nos jogos de dados nas cartas viradas sobre a mesa na moeda que cai sem cara ou coroa perdidos em paixões mergulhados nas fabulações barganhando a mesma vida de sempre --- Olinda, XVI - V - MMXX Miles Davis, Alone Together
é reorganizar as memórias e todos os desejos em cada rua uma lembrança em cada esquina um riso feliz um fascínio renascido em cada praça o farfalhar das folhas e a algazarra das gaivotas em cada igreja em cada altar em cada casa em cada sobrado a vida a pulsar um Outono em cada jardim uma esperança em meu coração uma fera contida a deslizar atenta sorrateira pelos desvãos da cidade -- Porto, Estação de São Bento, VI - X - MMXIX Rui Veloso, Porto Sentido