segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

"A hora de viver"

"A hora de viver é um ininterrupto lento rangido de portas que se abrem continuamente de par em par".

Clarice Lispector
imagem: max ernst 

E a vida insiste em me chamar. enfio a cara no travesseiro - como a avestruz encosta o pescoço e a cabeça no chão - para que a luz da manhã que inside no meu quarto não me desperte. 

Inútil porque o barulho do dia que acorda, me acorda também. 

O som das buzinas dos carros, a cortina roçando na janela, num balé soprado pelo vento,  Tupã latindo, os pássaros cantando... Escuto essa sinfonia da alvorada desde às 6:00h, e resisto bravamente em minha cama o sagrado momento de começar o dia.

Mas "lá vou eu em meu eu oval", construir o meu bom dia - se desejares, desejo que construa o seu também - !


Pernambuco, num dia de MMXI

domingo, 27 de dezembro de 2020

No céu, um clarão

"E Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita. E Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Deus chamou à luz DIA, e às trevas NOITE". 

Gênesis, 1:3

imagem: arquivo pessoal

Então fez-se um clarão no céu, e um rasgo dividiu o dia, da noite. 

Entre as nuvens de um cinza esmaecido, o inesperado surgiu, e abriu-se em copas o firmamento e, do espelho de águas refletido, emergiu a criação: lixo ressignificado em luxo; cores e magia; luzes e fantasias, era uma árvore de natal no Recife, que anunciava diferentes formas de proteger (a mãe) Gaia, das matérias inorgânicas que produzimos como também da nossa ignorância. 

Consciência, atitude e assunção, sejamos resonsáveis pelas nossas ações, pede a terra que agoniza. 

Mudança de pensamento e comportamento, transformemos  nossa postura, antes que o Planeta morra, não esqueçamos: a extinção é irreversível, sem a natureza, não existimos.

Pensemos mais, vamos agir mais, em 2021, sejamos melhores para nós mesm@s!


Árvore de natal feita de garrafas pet e cedês "piratas", nas águas do Rio Capibaribe, um dos tantos que corta a cidade do Recife.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

o coração batendo no mundo

"Fico às vezes reduzida ao essencial, 

quer dizer, só meu coração bate".


Clarice Lispector


imagem: arquivo pessoal

Nos iludimos pensando que o coração é do lado de dentro.
É nada!
Ele é mesmo é do lado de fora.
Grudado na gente como uma planta parasita.
Algumas vezes sangra em carne viva.
Como tem sangrado em muitos.
Uma inesperada Pandemia nos assola e trouxe consequências: distanciamento social, pânico, insegurança e ansiedade nas famílias de todos os Continentes.
Vivemos uma onda de oscilações, perdas e danos.
Estamos nos últimos dias de dezembro, de um anômalo ano, em que um vírus assustou o mundo todo.
Escrevo.
Escrevo como um registro do que se passa agora.
Escrevo como uma forma de expurgar o medo e o imponderável que nos rondam.
Não estou a ver as horas, porque não quero saber que horas são, mas penso que adentramos na madrugada, é o que me diz a quietude e o vento.
Talvez esse texto, no futuro, dirá melhor o que estamos a viver.
No meu país, já se anuncia o fim da primavera. Encontramo-nos às vésperas do natal, um natal jamais imaginado e diferente de tudo o que se pensou.
Um natal de afastamento, sem muito brilho e algazarra nas ceias, com as famílias isoladas, apartadas, entristecidas e sorumbáticas, mergulhadas em tensões e silêncios.
Muitas a viverem dias de dor, de luto, de tristeza e de despedidas inesperadas. O horror.
Mas o momento nos ensinou muito sobre solidariedade, finitude, simplicidade, o retorno à Natureza e a desnecessidade de planejamentos e excessos.
Além de nos lembrar que a vida é agora, é hoje, já.
Vivamos o instante!
Não deixemos o tempo nos arrastar por caminhos e estradas que não são nossas.
Amemos nossa família, nossos amigos.
Deixemos o coração se expandir rumo ao infinito, porque o mundo está um caos e, nós também.
Inventemos um solstício que nos deixe com dias longos cheios de luminosidade.
Cuidemo-nos e aquietemos o espírito, vai passar. Vai passar.

Pernambuco, XII - MMXX

Leonard Cohen, Famous Blue Raincoat

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

dos sentidos

"[...] Num País sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua".

Sophia de Mello Breyner Andresen em Ausência



                                            imagem: bride with a fan (1911) marc chagall


viver às custas dos sentidos
faz sentido?
como acreditar neles?
e se num rompante
os sentidos se rebelarem
e burlarem
o que cada sentido nos faz sentir?

posso beber com os olhos?
se repentinamente eu engolir com os ouvidos?
pode o meu olfato escutar sons?
acaso é proibido tatear com a língua?

tudo é convenção
até a própria convenção.

tatear é a materialidade do toque (?)
como eleger (os) sentidos
se todos somos plenos de sentidos
se o mundo e suas representações
nos assaltam
singular e
pluralmente?

todo o tempo
o tempo todo
somos
poros
ossos
carne
órgãos
sentimentos

tremores
odores
respiração
gotas de suor 
e quase sempre de partida.

---

Pernambuco, I - XI - MMXVII

Chet Baker, Leaving
 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

"le temps de l'amour"

"Un beau jour c'est l'amour et le coeur bat plus vite, 
Car la vie suit son cours
Et l'on est tout heureux d'etre amoureux"

imagem: arquivo pessoal


uma borboleta?
uma flor?
a nossa imaginação dá a medida do nosso (des)conhecimento?
qual é o limite de uma mente que sonha?
o sonho de cada um é do tamanho que cada um deseja?
sonho é ilusão?desejo é transpiração?onde está o fio que desconecta um do outro? em qual ponto do caminho a distraçãodestraçou o esboço,apagou o desenho,arrancou a seta,e deixou em abandono,o que um dia foi um grande plano?resistir,insistir porque,todo tempo é momento de acordar,avançar,pular as ondas,reconectar e amar. 
--Sem local e sem data.

Françoise Hardy, Le Temps de l'Amour



quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

o sol rasgando a escuridão da noite

"Erguia-se para uma nova manhã, 

docemente viva". 


Clarice Lispector em Perto do Coração Selvagem


imagem: arquivo pessoal

eu vi o sol rasgar a escuridão da noite
eu vi quando os raios laranjas atravessaram o ventre do dia
e as últimas estrelas sumiam na claridade solar
e as nuvens encobriam a lua minguante

que esquálida, fina
desaparecia por entre aqueles vapores condensados
que se movimentavam em vários sentidos formando todo tipo de imagens
enquanto eu tentava decifrar quem era quem

naquele mundão infinito:
cirrus, stratus ou cumulus
se lá em cima a atmosfera estava fria
cá embaixo começava mais uma indefinição diurna

enquanto centelhas de luz incidiam nos cristais de gelo
como espadas de luminescências cortando a claridade
e eu alimentava a minha pareidolia
múltiplos sons, cheiros e outras vozes que brandiam

anunciavam que já era hora de sair do transe madrugador
esquecer o indecifrável torpor
abrir as cortinas da vida
ouvir mendelssohn

despertar na alma a alva da manhã
regar as plantas
dar comida ao gato
meditar

fazer café 
alegrar-se em ver o estrear de um dia inteirinho novo
atravessar o que não faz sentido e
aproveitar o acaso(?)

Olinda, X - XII - MMXX

 Mendelssohn, Songs without Words Op. 19 No. 1 (Gortler)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

vi o mundo nascer sob as pálpebras dos seus olhos

"Direi verde 
do verde dos teus olhos 
de um rugoso mais verde 
e mais sedento [...] 
Direi dos olhos verdes 
os teus olhos 
e do verde dos teus olhos direi vício [...] 
voragem mais crispada 
ou precipício"

Maria Teresa Horta em Candelabro

imagem colhida na web, desconheço a autoria

vi o mundo nascer sob as pálpebras dos seus olhos
e quando eles se abriram
resplandeceu um sol dardejante 

mergulhei naquele verde imenso
que se ampliou
na sagração daquele instante 

em que seus olhos me tragaram
e nessa dupla observação
aconteceu um tsunami

uma explosão de verd' águas
uma despertar de emoções
com intensidades extremas

ora intensas, ora serenas
na cumplicidade dos mais amorosos sentidos
momentos de paixão, momentos de sedução

alternando o desejo onírico de eternidade
de viver em teu abraço cuidadoso, profundo
meu lugar no mundo

todos os instantes de nós dois

Lisboa, V- IX- MMXIX

Bill Evans Trio, Like Someone in Love

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

o menino, o tempo e os mistérios das pipas

"e algumas pessoas
vão te amar por seus despropósitos". 

Manoel de Barros

imagem colhida na internet, desconheço a autoria

                                                                   A Charles Dias
 

as pipas são as memórias 
da infância no céu
colorindo o tempo 
em desenhos de papel 

quantos voos fizeram
naquela imensidão 
quais matizes reluziram 
perambulando ao vento

as pipas policrômicas
em plenos movimentos
revelando a ternura 
num traçado infinito

o esboço mais bonito
do espírito transbordante
daquele menino sonhador
que viu no contra plano do chão

que as pipas não obedecem uma lógica
um sentido, uma razão
é a força, é a voz
quem comanda a ação

de dentro das reminiscências 
guardadas desde a meninez
daquela estação feliz
fez-se ouvir um som melodioso

lá do coração das pipas
entoou-se uma canção
de um "admirável mundo novo"
porque era um destino, um desejo
de cruzar a linha mágica

de um passado poético 
onde o tempo correu ligeiro
carregado de emoção
da vida vivida no interior das pipas

o voo em oposição 
de um futuro sorridente
que atravessou inesperadamente 
o caminho traçado lá atrás pelo menino

as pipas e os seus mistérios
---

Olinda, VII - XII - MMXX

Zé Ramalho, Admirável Gado Novo




sábado, 10 de outubro de 2020

página 57

"Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis".

Hilda Hilst


imagem colhida na internet, desconheço a autoria


abri a página no nº 57
não havia nenhuma mensagem
folha limpa
de um breviário 
revestido de ausências
hiatos e reticências

porque pairavam sobre todos os tempos 
outros tempos tão loucos, indecifráveis
a noite, o silêncio e as estrelas
mais um dia
mais outro
se seguia

a página 57 estava à espera
da escrita
do rabisco
dos desenhos e espirais do tempo
feito molas soltas
deixadas aleatórias sobre a superfície do caderno em sépia

que ela carregava pela vida afora
na vida que foi possível
que brilhava amiúde
que vibrava também adminutim
entre tréguas e
entregas

naquela página 57 escreveria sobre vinhos
nada de iras
francesinhas, risos, alegrias do momento
de uma solenidade em que se evocava
a distância transatlântica, continental
dentro de um projeto pessoal

que alimentava e recriava um mundo
fechado a sete chaves
envolto no passado
daquele tempo guardado
em júbilos de cetim
naquela avidez de ternura que nunca teve fim

a pagina 57 carregava um simbolismo
algumas cartas não enviadas em fitas atadas
um retrato imaginado 
o beijo imortalizado
na efígie em branco e preto
um antigo desejo eternizado

daquela viagem que não fizeram a paris

Porto, III - I -MMXIX

Beth Hart, Fire On The Floor



quarta-feira, 26 de agosto de 2020

mudança

"E farta de fadigas. E de fragilidades tantas. 
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra 
Como só soem ser aranhas e formigas. 
Que este amor só me veja de partida"

                                                                          Hilda Hilst em Que este Amor não me Cegue

imagem: marx ernst


de mudança em mudança
sequer se sabe
onde foi parar a esperança
foram tantas andanças
tantos os caminhos

as encruzilhadas
os confrontos
mas
nenhum dos dois queriam morrer
nenhum dos dois queriam ceder

o que era paixão
volúpia
ardor
virou ilusão
logo ao entardecer

fechou o tempo
tudo mudou
a paixão escarlate
desbotou
esmaeceu

mudou ela
mudou ele
mudou o desejo
mudou o sonho
a vida mudou

as palavras voaram
nas asas do vento
escoaram vazias
sem sentimentos
desencantadas.

---

sem data

Beth Hart - I Need A Hero (War In My Mind)

terça-feira, 4 de agosto de 2020

no canto oculto da memória

“Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais
A cidade onde desenho
Teu rosto com sol e Tejo
[...]
Nas manhãs de tua ausência
Tão perto de mim tão longe
Tão fora de seres presente”

Manuel Alegre, Balada de Lisboa, do livro “Babilónia”, 1983.

imagem: arquivo pessoal

aquela luz que reverbera sobre o Tejo
são as reminiscências dos seus olhos nos meus
que a tudo observa
e captura imagens evocadas pela angular do desejo

passeio pela beira do rio
num tempo de dissonâncias
murmurando por um fio quase silente
o teu nome a diluir-se com o vento

no fluxo e refluxo das águas 
se espraiando pelas pedras da Ribeira das Naus 
carregando comigo apenas o antes e o depois
na esquina oculta da memória

acompanho o curso da água
escutando um cantar clandestino
do ponto mais profundo do meu ser
com toda a força dos meus ossos

uma saudade materializada
na solidão pré-outonal
se amplia na fluidez do Tagus
que deságua em mim

abandono-me neste destino fatídico
que me equilibra eras sem fim
cumprindo essa indesejada sina
a sua diáspora de mim

--

Lisboa, IV - IX - MMXIX

Nina Simone, Just Like a Woman



quarta-feira, 17 de junho de 2020

novo canto

"Claro, enquanto isso
há frases, há pétalas, há rios,
há a ternura como um vento úmido.
Só enquanto isso". 

Mario Benedetti em Só enquanto isso

                                                          imagem: arquivo pessoal

é hora do sonho
devolva-me a palavra
porque hoje eu vou escrever um novo canto
para renovar os fonemas
as cores
o riso
e gorjear com os pássaros

lá vem raiando a futuridade
devolva-me a palavra
porque o amanhã
já se instalou
silencioso
nas entrelinhas dos caminhos

devolva-me a palavra
porque neste presente momento
o que nos resta é ressignificar:

o tempo
os dias
as coisas e
respirar

a vida que se estreia outra vez

--

XI - VI - MMXX

Miles Davis, Give It Up


quarta-feira, 27 de maio de 2020

que coisa és?

"Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado 
Surdo à minha humana ladradura". 

Hilda Hilst 

                 salvador dali: endless enigma (1938)

por que devo dar-te um nome
se nomear exige a presença do nomeado
da coisa
que coisa és?

para que limitar
em um nome
tudo aquilo que em mim provocas
se ainda nem lhe conheço e

apenas vagueias entre os desejos
sem formato
cheiro ou dor
nos meus desertos insones

para que devo dar-te um nome
se nada sei sobre amor
sobre o rosto
sobre o corpo ou pudor

que coisa és?
diz-me
porquê
atiças e revolve a poeira

escondida entre os meus sótãos
na terra derramada
do jarro sem flor
que coisa és?

quem és?
diz-me agora:
és tudo ou nada!

--

Lisboa, VI - IX - MMXIX

Chet Baker, I' Am a Fool to Want You


quinta-feira, 21 de maio de 2020

chá com chuva

"Aos olhos nus, não passava de um chuva repentina, 
mas aqui dentro soava como uma tempestade".

Clarice Lispector
imagem colhida na internet, desconheço a autoria

Já não sei mais se espero a madrugada, espontaneamente, se de caso pensado (ou sono perdido), ou ainda se ela reside em minhas esperas, que até mesmo eu, desconheço o que esperar.
Mas espero a madrugada. E a madrugada me espera também.Temos um encontro marcado, mudo. E nunca nos atrasamos.
Ela chega. Muitas vezes com uma chuva fina, miúda, cheia de brandura.
A cidade está silenciosa, não se escuta nada além do chuvisco que desliza de forma macia e suave pela vidraça da minha janela, criando visões e sensações particulares. 
Penso nos demais seres madrugadores que "habitam essa terra desolada" em que se transforma a cidade, neste pré-alvorecer. Estarão vendo o mesmo céu? Ouvindo o mesmo som da chuva? Chove também para eles? Estarão protegidos?
Entre tantas indagações, vou à cozinha, faço um chá de hibisco, volto devagar e me planto outra vez a observar o que é possível desde o lugar em que estou.
Pequenos borrifos de água formam uma cortina transparente, numa ilusão de ótica, uma espécie de código de barra inesperado.
Reparo na iluminação da minha rua, luzes neon e de mercúrio se misturam sobre os telhados das casas e rebrilham no asfalto, agora molhado.
Espicho os olhos para além dos edifícios que ladeiam as ruas e percebo que uma tonalidade vermelha vai adquirindo outra nuance, ao se projetar por sobre a copa das árvores. Como se do alto, caísse uma tintura para matizar a densidade da neblina, misturando-se aos revérberos das luzes e do sereno.
Pequenas antenas parabólicas, fixadas na cobertura do prédio defronte, parecem cegonhas pousadas, descansando em seus ninhos, como se a madrugada anunciasse o fim do expediente, a hora da inatividade dos voos, do adormecimento. 
Dirijo-me então ao quarto, tentando não achar que estou desperdiçando noites.
Ponho o Miles para tocar, apago a luz, fecho os olhos e me deixo levar pelas notas diferenciadas do seu trompete magistral.
Daqui a pouco é outro dia.
Apesar da mesma rotina, tudo se renova, tudo espelha o novo momento desse dia, que o tempo trouxe, para ser mais um contabilizado no calendário dos homens.

Olinda, Maio de um estranho tempo de MMXX

Miles Davis Quintet, It Never Entered My Mind

segunda-feira, 18 de maio de 2020

olhares para o vazio da noite

"Ser inteiramente livre e ao mesmo tempo 
inteiramente dominado pela lei 
é o paradoxo da vida humana"

Oscar Wilde em De Profundis. p. 49

imagem: chagall

era de dentro da exaustão
que brotava aquele eco desconhecido
que assombrava o vazio da noite

que trazia o peso de todas as lágrimas
derramadas por toda a humanidade
de todas as coisas humanas

que causavam estranhamentos aos deuses
que espécie alienígena é o homem, pensavam
mas os deuses abandonaram os homens

em seus próprios flagelos
em suas lutas e ruínas
e os encarceraram na ilusão do poder

uma cobrança e um fardo do pecado original
mas os deuses estão mortos.
e os homens ao léu

os destinos definidos nos jogos de dados
nas cartas viradas sobre a mesa
na moeda que cai

sem cara ou coroa
perdidos em paixões
mergulhados nas fabulações

barganhando a mesma vida de sempre

---

Olinda, XVI - V - MMXX

Miles Davis, Alone Together



quarta-feira, 13 de maio de 2020

revisitar o Porto

"E é sempre a primeira vez
Em cada regresso a casa
Rever-te nessa altivez"

Rui Veloso em Porto Sentido




revisitar o Porto
é reorganizar as memórias
e todos os desejos

em cada rua uma lembrança
em cada esquina um riso feliz
um fascínio renascido

em cada praça
o farfalhar das folhas
e a algazarra das gaivotas

em cada igreja
em cada altar
em cada casa

em cada sobrado
a vida a pulsar
um Outono

em cada jardim
uma esperança
em meu coração

uma fera contida
a deslizar atenta
sorrateira

pelos desvãos da cidade

--

Porto, Estação de São Bento, VI - X - MMXIX

Rui Veloso, Porto Sentido



b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...