quinta-feira, 21 de maio de 2020

chá com chuva

"Aos olhos nus, não passava de um chuva repentina, 
mas aqui dentro soava como uma tempestade".

Clarice Lispector
imagem colhida na internet, desconheço a autoria

Já não sei mais se espero a madrugada, espontaneamente, se de caso pensado (ou sono perdido), ou ainda se ela reside em minhas esperas, que até mesmo eu, desconheço o que esperar.
Mas espero a madrugada. E a madrugada me espera também.Temos um encontro marcado, mudo. E nunca nos atrasamos.
Ela chega. Muitas vezes com uma chuva fina, miúda, cheia de brandura.
A cidade está silenciosa, não se escuta nada além do chuvisco que desliza de forma macia e suave pela vidraça da minha janela, criando visões e sensações particulares. 
Penso nos demais seres madrugadores que "habitam essa terra desolada" em que se transforma a cidade, neste pré-alvorecer. Estarão vendo o mesmo céu? Ouvindo o mesmo som da chuva? Chove também para eles? Estarão protegidos?
Entre tantas indagações, vou à cozinha, faço um chá de hibisco, volto devagar e me planto outra vez a observar o que é possível desde o lugar em que estou.
Pequenos borrifos de água formam uma cortina transparente, numa ilusão de ótica, uma espécie de código de barra inesperado.
Reparo na iluminação da minha rua, luzes neon e de mercúrio se misturam sobre os telhados das casas e rebrilham no asfalto, agora molhado.
Espicho os olhos para além dos edifícios que ladeiam as ruas e percebo que uma tonalidade vermelha vai adquirindo outra nuance, ao se projetar por sobre a copa das árvores. Como se do alto, caísse uma tintura para matizar a densidade da neblina, misturando-se aos revérberos das luzes e do sereno.
Pequenas antenas parabólicas, fixadas na cobertura do prédio defronte, parecem cegonhas pousadas, descansando em seus ninhos, como se a madrugada anunciasse o fim do expediente, a hora da inatividade dos voos, do adormecimento. 
Dirijo-me então ao quarto, tentando não achar que estou desperdiçando noites.
Ponho o Miles para tocar, apago a luz, fecho os olhos e me deixo levar pelas notas diferenciadas do seu trompete magistral.
Daqui a pouco é outro dia.
Apesar da mesma rotina, tudo se renova, tudo espelha o novo momento desse dia, que o tempo trouxe, para ser mais um contabilizado no calendário dos homens.

Olinda, Maio de um estranho tempo de MMXX

Miles Davis Quintet, It Never Entered My Mind

14 comentários:

  1. Sabe bem sentir as gotas de chuva no rosto, melhor ainda é ver chover de mansinho duma janela. Estimula o sono e as plantas.
    Saúde.
    Bjs

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    1. Sim, é um prazer que nem todos conseguem sentir ou perceber.

      Boa semana.

      Abraço.

      :)

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  2. um texto muito bem cerzido
    que sugere, mais que descreve, a ambiguidade
    das madrugadas de insónia...

    belo texto

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    1. Obrigada, prezado Manuel, pelas palavras e observação.
      Não é sempre que consigo cerzir a sugestão na mesma proporção da descrição, mas me alegra a sua percepção e revelação desse feito.
      Boa semana.

      Abraço.

      :)

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  3. Belo texto. Amei ler

    ( O seu blogue não atualiza. Sabe porquê? )

    Bom fim de semana

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    1. Obrigada, pelas palavras gentis e elogiosas, Ricardo.

      Não sei dizer o porquê ele não atualiza, sinto muito.

      Boa semana.

      Abraço.

      :)

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  4. Ouvir jazz numa insónia nunca me ocorreu. Sou mais de leituras, de preferência aborrecidas...
    Magnífico texto, gostei imenso.
    Uma boa semana.
    Abraço.

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    1. Obrigada, pelas palavras e considerações ao meu texto.

      Quanto a ouvir Jazz durante uma insônia, eu aconselho, experimenta e depois fala da sua experiência. Às vezes fico mais desperta, porque a música vai me envolvendo de tal maneira, que quero ouvir a próxima nota, depois a outra, a outra...

      Boa semana, igualmente.

      Abraço.

      :)

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  5. Excelente, Canto, esse teu murmurar para que te possamos ouvir nas tuas íntimas divagações.
    Gostei muito do texto. Parabéns!

    Abraço :)

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    1. Muito obrigada, A.C.,esse monólogo murmurante tem sido constante, nesses tempos de pandemia.

      Abraço.
      :)

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  6. Um texto em que me revi
    que até me emocionou...
    belaaa prosa poética minha amiga!
    beijinhos
    :)
    http://olharemtonsdemaresia.blogspot.com/

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    1. Muito obrigada, querida Piedade.
      Tenho tentado compreender melhor quem sou, nesse tempo que quase nada sei...
      Me alegra saber que tu te identificastes.

      Beijinhos.

      :)

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  7. 5 MINUTOS DE JAZZ
    a não perder
    Até jazz

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Prazer tê-lo/a no Canto, obrigada pela delicadeza de dispor do seu tempo lendo-me. Seja bem-vindo/a!

Gaza

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