segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

em 2020 seja como desejares

"Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre".

Carlos Drummond de Andrade em Receita de Ano Novo.


imagem: arquivo pessoal (Olinda ao amanhecer com o recife ao fundo)

A todo instante podemos tocar e sentir a fragilidade e a fugacidade da vida. Ocorre que quando estamos na dimensão vital a nossa percepção é de que sempre a tivemos e sempre a teremos. 
Sim. É um fato. Mas não a teremos ou seremos da mesma forma infinitamente. Temos consciência da nossa finitude (?), mas não tão concretamente. 
Estamos vivos, não pensamos em fim, em término. Muita vezes agimos como se a vida fosse uma longa noite que nunca acabará. 
Nem todos têm a consciência de que a vida é irresistível, irremediável e inadiável. Estão sempre deixando tudo para depois, procrastinadores da existência.
Desejo que o seu "destino" em 2020 sejas o mais amoroso e feliz possível;
Que em todas as manhãs inaugures um jeito novo de olhar o mundo, lindamente;
Que o fluxo vital irradie sobre todos, toda a beleza do Multiverso, num ato contínuo de troca e renovação.
Viver o hoje como se só ele existisse. Porque só ele existe. Sua existência está sendo. Está a ser. No gerúndio e no infinitivo. E a partir desse hoje construir muitos amanhãs festivos, se possível.
Cuide-se muito para assim poder desfrutar da melhor forma o Novo Ano que já anuncia o despontar de novas luzes, de novos dias.

Brinde com muita alegria o Ano Novo que se inicia, porque só ele será assim.

Olinda, XXX - XII - MMXIX

John Lennon, Imagine

domingo, 29 de dezembro de 2019

olhos de incerteza

"Doía feito desabafo"
José Almino em Encouraçado e Cosido dentro da pele. p. 39

marc chagall: around her  (1945)

já não olhava mais a vida com olhos de incerteza
a vida em seu sopro diário
se desnudava como bem entendia

cada um que a compreendesse
como bem quisesse
com ou sem mistérios

gozosos
dolosos
inexplicáveis

ou um simples dar de ombros
cansados de carregar
o mundo nas costas

e não ser herói de nada
apenas mais um na multidão.

Olinda, XXVII - XII - MMXIX

Led Zeppelin, No Quarter


segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

noite & dia

"Uma linha de azul fina e pálida traça
Um lago, sob o céu atrás da nuvem clara"

Stéphane Mallarmé

imagem colhida na internet (desconheço a autoria)

cruzei comigo ao amanhecer
como se ainda fosse noite
entre o ontem e o hoje
vivi uma eternidade

o clarão do dia
irrompeu na minha escureza
atravessou os meus olhos
como se fosse uma explosão 

de estrelas.
noite e dia
costurados
na mesma linha do horizonte

por anos-luz de histórias
hipóteses
festins
cantorias

e outros sons ancestrais
rostos
restos
de revoluções cósmicas

---

Olinda, XV - XII - MMXIX

Rolling Stones, She's A Rainbow

terça-feira, 26 de novembro de 2019

a solidão dentro dos ossos

"Meus olhos têm telescópios
espiando a rua, 
espiando minha alma 
longe de mim mil metros". 

João Cabral de Melo Neto 
natureza morta com relógio: tarsila do amaral

a solidão se escondia dentro dos ossos
e o sangue que corria nas veias
pegou um atalho
para desaguar noutro  lugar

foi quando o cuco do relógio
à meia-noite
bradou doze vezes
hora da festa dos sonhos

eram tantos
tontos, tolos
acaçapados dentro dos ossos
milhões de anos

mas a passagem das horas 
abriu as portas da alma
arrancou a solidão dos ossos
e brindou com vinho tinto

a festa dos sentidos!

--

Parede, XIV - IX - MMXIX

Eric Clapton, Stones in My Passway



terça-feira, 19 de novembro de 2019

entre o pássaro e o céu

"em toda terra há céu, 
e em todo céu há pássaros"

Mia Couto e José Eduardo Agualusa em O Terrorista Elegante

imagem: arquivo pessoal (olinda)

entre o pássaro e o céu
há o azul
e os desenhos geométricos
traçados pelos voos

cada pássaro carrega a liberdade
nas asas
um sonho em cada olho

um desafio no horizonte
o equilíbrio em cada pouso
um novo canto
um mistério

um destino esboçado
vão guiados pelo sol 
adensando a luz com leveza

e o vento
revoluteando
nas amplas alças
da minha imaginação

--
Porto, XIX - XI - MMXIX

Azymuth, Linha do Horizonte







terça-feira, 5 de novembro de 2019

insignificâncias

"Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes
Prezo insetos mais que aviões. [...].
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos".

Manoel de Barros

                                          imagem colhida na internet, desconheço a autoria

eu gosto das matérias inúteis
das coisas vãs 
sem grande valor 
insignificantes

das estrelas piscando no céu
das folhas voando ao léu
dobraduras
papel de seda, crepom

das pedras energizadas
soltas no monturo
de uma casca de avelã no meio do caminho
de uma flor de beira-estrada

relegada, largada ao nada
na berma da grama
que ninguém cuida 
e sequer se importa

eu gosto daquela poesia
que alguém leu e lembrou de mim
da música que ninguém ouvia
mas agora faz sentido 

porque traz os movimentos
da dança desconectada
dos braços rodopiando
do estado de transe, que a tudo envolvia

eu gosto da labuta da formiga
do voo da borboleta
das pausas das abelhas
polinizando de flor em flor

porque a vida só faz sentido
se
conectada com as pessoas
e com tudo que existe no multiverso

por isso cada vez que sorris
e a tua boca encontra a minha
o mundo renasce
na curva dos teus lábios
--

Porto, V - IX - MMXIX

Cássia Eller, Luz dos Olhos






quinta do laurentim

"O jardim está brilhante e florido,
Sobre as ervas, entre as folhagens,
O vento passa, sonhador e distraído, [...]
Avança pelos caminhos
Até os fantásticos desalinhos."

Sofia de Mello Breyner Andresen


imagens: arquivo pessoal (sernancelhe)

castelo de pedras
bunker
lareira, lenhas, cestos e lãs
sinos de vento, selfie-portrait, quebra-luz
noite densa
calmaria
quietude em todas as línguas

via-láctea quase sem estrelas
quase
neon no céu
vila acesa
mochos, sapos, rãs, cigarras
sinfonia
virgínia woolf

o quarto de jacob
o quarto grande da cama de casal
o quarto da val
janela de madeira e vidro
cama de ferro
teto de carvalho
inesperada agitação

josés, manuéis, marias, anas, piedades
senhor, tende piedade desse coração
uma vida inteira
vivida na intensidade
entre a sexta e o sábado
ouvindo silêncios
interrompidos amiúde

pela voz imponente da natureza
quartzo branco, rosa, granito, mica,
filossilicatos, em perfeita divisão basal
feldspato
pedrarias
ao amanhecer do dia
caminhos floridos

aleatórios
rosas rosas, brancas, amarelas, buninas
ervilhas de jardim
flores roxas
papoilas brancas, amarelas
jarros também brancos
cenário ímpar

harmonia
borboletas multicolores
em movimento
céu azul com grossas pinceladas brancas
um mundo etéreo
rajadas de vento 
transparente

em contraponto, fulgor
luz cintilante
de um sol abrasador
pensamento ausente
tão distante, ardor
cadeiras na varanda
café

prosa leve, alegria
a paz dos anjos
quem diria
carvalhos, pinheiros, pinhões, figueiras
castanheiras, oliveiras, limoeiros, laranjais
abelhas, zunidos, melros, escaravelhos
cobras, lagartas, aranhas

tantos sinais
curiosa reunião
a celebrar uma história tão ancestral
uma pausa no fluir do tempo
feixes de luz
vista espraiada
no campo e nos sendais

a nitidez da situação
audição da respiração
a perscrutar a emoção
o farfalhar da brisa sobre as folhas
verdes, secas, amarelas
nem inverno, nem primavera
nem verão, nem outono

ou qualquer estação
a não ser aquela:
estado pleno de pré-paixão
penedos escurecidos
polidos pelo vento
recobertos de musgo
num canto esquecidos

o tom do dia 
era medido pelos ininterruptos pensamentos
a soprarem rumo à coimbra
com uma gama de variações na paisagem
oscilações entre o verde água e o castanho terroso
uma evocação do outubro
em plena primavera

os terrenos em retalhos
desenhando hortas nos quintais
donde brotam hortaliças e vegetais
traçando sem demora
uma rota imemorial
anelando desejos e corações
costurados em delicados fios

tecidos na ilusão.

--

Sernancelhe, páscoa de MMXIX

Nina Simone, Tell it like it is








domingo, 27 de outubro de 2019

luar ausente

"Você já falou o que precisava ser dito, 
agora é esperar a pessoa estar pronta 
para um dia ouvir." 

Carpinejar 
imagem: arquivo pessoal (peniche)

na escuridão do quarto:
pensamentos cúpidos
memória insistente

corpo vivo
riso lascivo
mãos insolentes

impulso irrefreável
desejos indômitos
apesar da tepidez

e um apelo discreto
à noite indiferente
que produza a magia

de levar a voz
a hora e a vez
do sentimento tanto

que brota profundo
dentro de um singular mundo
ao luar ausente

--

Porto, XX- IX- MMXIX

Styx, Babe

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

o que vem depois do depois?

"Quem és? Perguntei ao desejo. 
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada".
Hilda Hilst


imagem: arquivo pessoal

para onde olhava via vermelho
nas folhas, nas flores, no sol
era como se o dia e a noite
obedecessem a uma só lógica

há muito havia deixado para trás:
a lua, as estrelas e a ilusão
tudo era cru 
tudo era nu

e um monocromatismo
para além da imensidão
aqui e ali
um azul 

para mostrar o tempo em contramão
se frio havia
não sentia 
a vida estava longe demais

sem pássaros
sem cantoria
andava em qualquer canto
sem contato com o mundo

o que outrora fizera sentido
hoje é só um rabisco
sem nexo
no centro da questão:

e o que vem depois do depois?

--

Porto, XXV - X- MMXIX

Leonard Cohen, Happens to the Heart



segunda-feira, 21 de outubro de 2019

a poesia existe?

 "toda revelação de Beleza coloca o ser humano 
diante de Deus mesmo".

Felipe Magalhães Francisco

imagem: arquivo pessoal

a poesia existe?
ou 
o que existe é o ser poético
que habita em nós?
não existiria a poesia
se em cada ser que sente
não sentisse vontade  de fazer poesia?

essa vontade de trespassar o tempo
o arco
a dor
a alegria
e os estilhaços
fractais de sentimentos

ressentimentos
desilusões
acontecimentos banais
que para o poeta
é a matéria crua
onde  faz a catarse

e costura 
as metáforas
as flores, as abelhas, o mel
o mar, o sal, as ondas
as conchas, caravelas, gaivotas
e o céu

desenha as estrelas
pinta o farol
ilumina o caminho
realça as rochas
e apresenta o cais

o poeta é o artista
que nos amplia a vista
alimenta a vida
aquieta a nossa alma

inventa palavras
códigos e sinais
inventa um universo
o sol vermelho
e o outo lado da lua

o poeta é estrada
é poeira
é profusão
é voz que adverte
fala que diverte
é multidão
lagar da solidão

é o poeta o deus da poesia?

--

Porto, XXI - X - MMXIX

Michael Kiwanuka, Cold Little Heart



sábado, 19 de outubro de 2019

aqueles que fazem o mundo

Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos.Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo".
 Buda
                                             imagem: arquivo pessoal


uma vez alguém me disse:
- admiro aqueles que fazem o mundo
que acreditam naquilo que fazem
que vivem daquilo que criam e 
que acreditam no que criam

eu admiro ainda os poetas
os músicos
professores
filósofos
todos os artistas

porque do que nada existe
criam a existência 
e a beleza da vida
para todos nós

inventam modas
esquecem as horas
esquecem a casa
aquecem a vida
embriagam o mundo
enlouquecem

e só então
eras depois
lhes atribuem o galardão
que de nada serve
posto que
a única coisa que serve nessa vida
é ela mesma
o existir enquanto se existe
a plenitude dessa existência

como cuidas da sua
como a percebes
como é
como és
és?
--

Porto, XIX - X- MMXIX

George Harrison, My Sweet Love



sexta-feira, 18 de outubro de 2019

o deslindar da vida

"Eu mesma não entendo minha enormíssima paciência 
de ficar à toa, só pensando, pensando e sentindo".

Adélia Prado
imagem: arquivo pessoal

acordar
dormir
não desejar
caminhar
respirar

e o teu cheiro vivo
espalhado pelo meu corpo
amalgamado
como um unguento
contra a saudade
como um repelente
a afastar inclemente
qualquer outra aproximação
alimentando a inconstância
e a indefinição
e a contradição
e o deslindar da vida:

acordar
dormir
não desejar
caminhar
respirar

prosseguir.

Porto, Estação de São Bento, V - X- MMXIX

Chet Baker, Tenderly

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

aquietemos

"Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim, calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas"

Olavo Bilac


imagem: arquivo pessoal porto)
com que então não aquietemos 
a mente?
uma vontade solitária
até tem força
se expande ao léu
além

mas a vontade isolada
é só uma lufada de vento
que revolve as folhas
o pó
assanha os cabelos
assanha

e nem se dá conta
do que emaranhou
com que então não aquietemos
os sonhos?
e deixemos a cumplicidade 
na gaveta

no cemitério dos desejos
na caixa de guardados
ou
escondidos entre os papéis
amassados
sobre a escrivaninha

que o tempo amarela
as linhas
embaralha as letras
e vira papel velho
que já não vale mais
nada
aquietemos, pois.
--

Porto, XVIII - X - MMXIX

Chet Baker, Lament


b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...