quarta-feira, 29 de abril de 2020

"duplo auto-retrato"

"e sempre presente-ausente
como nós.
Cão que não querias
ser cão
e não lambias a mão
e não respondias
à voz.
Cão
como nós." 

Manuel Alegre


imagem: maurício arraes

minha alma velha de cão
não teme a solidão do escuro da noite
dentro da abstinência do teu riso
nem das cores que tropeçam
nas manhãs nascentes
rasgadas pelos caninos afiados
desocultando a indecência da luz

minha alma velha de cão
insiste em vagar insolente
no desamparo mundano
vivendo entre os homens
com os desejos dos homens
eu que tantas vezes sou como um cão
um cão solto no mundo

zanzando sem rumo
sem casa
sem dono
nos descaminhos impossíveis
por veredas confusas
carregando os vícios e  o peso do tempo
vergando a axial contra o peito

minha alma velha de cão
saliva faminta o famélico instinto  
gozo de bicho
na lubricidade do  homem
cheiro de vida
espraiando eternidade
nas tintas das aquarelas

minha alma velha de cão 
andejante
sabe lamber as feridas
flamejantes
da carne e do imo
abandonado 
sozinho

no breu  das praças
na dureza dos bancos
nos bafejos noturnos
nos fantasmas diurnos
que me assomam  o cansaço
de uma ausência atrevida
desenhado em meus olhos

que coisa é essa em mim
que se debruça da moldura
que reverbera no espelho
esse duplo auto-retrato
que cintila nos olhos
do cão arredio
que me espreita?

--

Olinda, XVII - IV - MMXX

Charlie Parker, All the things you are

quarta-feira, 8 de abril de 2020

somos experimentos de Deus?

"sua alma se tornara abstrata, e seu pensamento era abstrato, 
 ele poderia pensar o que quisesse e nada aconteceria. 
 Era a imaculabilidade. 
 Havia uma certa perversão em se tornar eterno"

Clarice Lispector em A Maçã no Escuro. p. 42


marc chagall: adam and eve expelled from paradise


essa grandeza abstrata
que não se sabe ao certo
mas que é visto
- se alguém disser que viu -

o tempo todo
em todo canto
em tudo que cerca
em tudo que é humano

em tudo que fere
em tudo que sangra
em tudo que engana
em tudo que omite

em tudo que sara
ad-infinitum.

essa destreza
que muitos se fiam
que usam das palavras
dos gestos

para condenar
para ajustar uma consciência desordenada
de uma sociedade abandonada
perdida em seus valores

na saciedade dos seus dissabores
no bojo das expectativas
no gosto das frustrações
na transmissão de uma culpa

infundada em Eva
pelo poder dos homens
até a eternidade
somos experimentos de Deus?

Olinda, sem data

Chet Baker, Lament




sexta-feira, 3 de abril de 2020

esse tempo feito do avesso

"Em nome da tua ausência
Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei"

Sophia de Mello Bryner Andresen

emil nolde: printemps dans la chambre (1904)

esse tempo feito do avesso
de desistências
e emoções suspensas

esse tempo feito de silêncios
e memórias
fragmentos na alma

esse tempo feito de poréns
abstinências
de  bocas que calam

esse tempo feito de incertezas
de esperas vãs
e quarentenas

esse tempo feito de partidas
de ajuntamentos de perplexidades e
de carnes que definham

nesse hoje feito de demoras.

---

Olinda, sem data.

Midnight Blues, Snowy  White



b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...