sábado, 29 de abril de 2017

O último café

"A vida é um sopro que dói"


imagem: arquivo pessoal

Retenho ainda o sabor encorpado daquele primeiro café que, lá atrás no tempo, entre um gole e outro nos permitíamos sonhar com o futuro.
E eram tantos devaneios e tantas as risadas. Ria-se de qualquer asneira. 
Parece que a paixão não dá conta de fazer triagens sobre o que se fala. Se fala tanto.
O tempo passou e fomos nos enredando em teias que impediam o abeiramento.
Perdemos a capacidade de fluir com os movimentos. 
Como aqueles primievos, que espontâneos não contabilizavam mágoas.
O tempo passou tão de repente.
E trouxe a conta das oportunidades perdidas, do sentimento engaiolado, do abraço engessado, do beijo que se esqueceu de acontecer.
Sacudiu no vento olhares perdidos em direção ao nada.
Nossos olhos emudeceram, nunca mais disseram nada. 
Nossos lábios foram congelados num rito de tristeza, nunca mais se abriram para nada. 
E quando por alguma brecha fortuita, fazia-se bom tempo, um sino repicado ao longe quebrava uma tentativa de reconexão.
A sensibilidade de outrora deu lugar às palavras ríspidas e a indiferença.
Quando aquela orquídea morreu, senti um calafrio, foi um mau presságio. Foi como um aviso de que nunca mais elas enfeitariam a nossa mesa do jantar.
Tudo vai morrendo. Tudo tem um limite.
Admiro como livros encaixados, sonhos empilhados se integraram na paisagem de desalento.
Agora que o encantamento morreu e o dia acabou, quando nos recostamos para descansar o corpo e o espírito, é que percebemos que, o "nunca mais seremos nós", atravessa o nosso peito como uma lâmina afiada, de maneira lancinante. 
Agora seremos sós. 
Agora é tarde, agora é um tempo sem volta.
A compreensão da ausência traz padecimento. 
Assim como a consciência da perda nos faz atravessar desertos de solidões. 
O tempo agora é de nostalgia, até do não vivido.
Cada dia doravante terá seu componente de tristeza, até findar o embotamento.
E ali naquele empório, impessoal, cercado de pessoas, numa tarde indiferente e fria de abril, sentados à mesa, não nos dissemos nada. Mergulhamos cada um em nossos porquês e entre um suspiro e outro, cheios de cansaços e tantas tentativas, não nos dissemos nada. 
Só tivemos tempo para o último café da nossa história.

Olinda, XXIX - IV - MMXVII

Helen Merrill, April in Paris.


domingo, 23 de abril de 2017

Atenção, a vida pede passagem!

 "Se o homem se mantiver em harmonia com o Cosmo 
todos os desequilíbrios deixam de existir."
Bodhidharmma

imagem pessoal

De quando em quando me pego pensando sobre os caminhos da vida.
E reflito como se fosse Deus que tivesse esvaziando e neutralizando meu olhar sobre tudo.
Me fazendo perder a capacidade de ver a beleza que me rodeia. 
Como se uma uma certa opacidade cercasse o mundo.
Olho para a vida e tudo se converte em banalidade. 
Sem lugar para a poesia.
Será?
A vida acontece. 
Estamos nela. 
Passamos por ela e temos mil maneiras de vivê-la. 
De mudar.
Transformar. 
Mas algumas situações permanecem. 
Inalteradas.
Haverá conforto na permanência?
Em manter o vínculo, um fragmento qualquer que justifique o que um dia foi inteiro?
Um fio. 
Qualquer fio. 
Até de ilusão, serve.
Qualquer coisa que mantenha a conexão. 
Mas o que significa manter um vínculo?
Um ser simbolista vê em tudo um totem .
E mantraliza: não há mudança sem vontade. 
Algumas vezes é nítido o desejo da mudança, mas não é sempre que se consegue mudar.
Porque no espaço entre o desejo e a realização existe um limbo.
Passado obnubilando o presente.
Mudar é mais além da vontade. 
Mudar é mais além da coragem.
Mudar é rompimento interno.
Mudar é cair no precipício.
Mudar é se abrir para o infortuito, para  o desconhecido, para o inesperado.
Mudar é arriscado.
(Não mudar é mais arriscado ainda)
Mudar é a essência da vida.
O descaso é destrutível.
Há tanta gente desatenta por aí...
Atenção, a vida pede passagem!
Namastê!

Olinda, IX - I - MMXVI


La Oneness Band, Sat Chit Ananda






terça-feira, 11 de abril de 2017

História de nós dois

  "Saudade é um pouco como fome. 
Só passa quando se come a presença".
Clarice Lispector in Aprendendo a Viver (imagens). p. 19

imagem: amedeo modigliani

Se você sabia que não existiríamos porque deixou brotar sua existência em mim? 
Serei agora eu sem ti ao meu redor.
Com aquele espaço na noite e um grande vazio ao despertar todas as manhãs.
Adormecer talvez seja a hora mais triste dos meus dias, porque estou desabitada da sua presença física que preenchia todos os meus vãos. 
Todas as noites me pego lhe esperando, mesmo sabendo que não virás. 
Todas as noites fecho os olhos e vejo o seu rosto colado ao meu e aquele sorriso que deixava ainda mais miúdo, os seus olhos de jabuticaba.
De certo modo não te foste - assim com todas as contradições -, já que lhe guardo em todos os meus sentidos - emaranhado entre os lençóis, nosso cheiro impregnado no ar e nós desvestidos -. 
Fiz das nossas horas, os anos que não teremos, a continuidade que não viveremos, fiz das nossas horas  uma história para nós dois - que não terminará com a sua partida. 
Fiz deste ínfimo tempo nossa eternidade.
Não tenho mais sede do mundo.
Não reclamo a pressa para que tudo passe logo.
Não quero apagar as tantas descobertas.
Os segredos só nossos.
Os desejos loucos que murmurávamos dentro das nossas bocas.
Quero guardar o brilho dos nossos olhos quando nos descobrimos um no outro.
Quanta emoção desenhamos na pele, nos poros, no riso.
Quanto nos entregamos e aceitamos?
Alguma pequena escuridão, que recebeu toda a luz que emanávamos de coração para coração, desde então. 
Tudo existe, porque nasceu antes na alma.
Consola-me uma lágrima solidária e furtiva, que escorre no canto do olho, e deságua sal no mar dessa saudade.

Recife, XXVII - I - MMIV

Amália Rodrigues, Com Que Voz

domingo, 2 de abril de 2017

Cafécentrismo

“Nasci de criaturas simples, 
instruídas naquela sabedoria que se adquire pela experiência e
 se advinha pelo senso comum”.
Clarice Lispector em Obsessão

imagem: arquivo pessoal

Acordo e ponho um disco do Leonard Cohen para tocar.
Despertei com o dia cinzento também em mim.
Terá sido a influência do céu tão pesado que paira sobre a cidade? O clima frio, invernal e as gotas de chuva que mal se anunciam, já se vertem líquidas?
Não sei.  
Antes de pensar e pesar os acontecimentos da semana que passou, preparo um café. Desses bem pretos, fortes, encorpados, quero o amargo do café preenchendo os vãos das minhas papilas gustativas, que é para ver se a vida guardada a sete chaves, desperta urgente e acontece na mesma proporção do desejo espraiado pelo corpo todo. Na tentativa de que seja ela mesma, a vida, a liga dos meus fragmentos.
Estou cada vez mais partículas de mim.
Estou cada vez mais apartada de mim.
Estou cada vez mais partida de mim.
Estou cada vez mais fluída em mim.
Num andamento um tanto quanto distraído e com uma visão incerta.
Já não sei mais me definir.
Desconfio que até o fim da minha existência o tempo não será suficiente para saber quem sou.
Volto ao meu cafécentrismo, porque é dele que tudo parte: as confissões, as confusões, os dilemas e as delícias de uma caminhante que não sabe o fim da estrada, cada vez mais densa e cheia de névoas, impedindo de ver o abismo ou o jardim florido, quiçá?
Uma coisa eu sei: estou sempre disposta a prosseguir.
“Nasci de criaturas simples, instruídas naquela sabedoria que se adquire pela experiência e se advinha pelo senso comum”.
Talvez seja essa uma das maiores lições que aprendi dos meus pais.
Recomeçar sem o peso do vivido. 
Tentar guardar apenas o valor da experiência.
Estou esvaziada.
Que venha a poesia nossa de cada dia.

Olinda, II - III - MMV

Leonard Cohen, Dance Me to The End Of Love

b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...