quarta-feira, 11 de julho de 2012

inquietude

"... a gente fica fora de foco, 
sem saber mais o que é
e o que não é.
 Nem meu anjo da guarda sabe mais onde moro".
Clarice Lispector

imagem recolhida na internet

Observo-me e absorvo-me. Olhos fixos na imagem semi-desfocada que reflete no espelho quebrado; uma moldura de cimento contorna meu olhar e denuncia uma dureza que não existia ontem. Há uma dilatação inequívoca na íris, que transborda uma situação passada. Uma lembrança. Uma saudade. Um tempo que foi. E desistiu. Desisti. Desistimos. A boca circunvalada por um batom vermelho, bem vermelho, numa tentativa de colorir uma parte cinza da vida. Essa em que sua ausência me grita (e sobra em tudo), e grita alto, o seu nome. E eu finjo não ouvir (e continuo me enganando), porque eu inteira estou surda à provocação da sua existência. Esfrego a boca raivosamente. Esfrego a sua imagem que agora reverbera naquele vidro polido e metalizado, me olhando ironicamente por sobre os ombros, porque sabes o que tenciono ocultar, porque conheces a verdade que teimo em velar. E fujo, e escondo o meu rosto entre as minhas mãos esquálidas, e meus dedos finos e longos. Você é sempre essa nascente de sentimentos, imbricados entre as minhas vísceras, diluídos no meu sangue, amalgamados em meu ser. Um mistério, um desejo, uma raiva.
E então desavisadamente, a sua presença ameaça se fazer ainda mais presente, viro as costas ao meu apelo e saio. Lhe deixo lá, em algum lugar do espelho.

... Somos apenas dois estranhos agora.


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1º semestre de 2012


O Filipe, um talentosíssimo poeta português, deixou-me esse reflexo, que partilho com vocês, e que podem lê-lo aqui:


Todo o espelho desnuda uma memória


Todo o grito guarda um silêncio


Toda a palavra é nascente e foz


Toda a ausência é desformada sombra 


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oiçamos a nigeriana-germânica, nneka lucia egbuna  - restless

18 comentários:

  1. Respostas
    1. (seres inconformados que somos. somos?)

      ;)

      obrigada pela presença!

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  2. Minha querida

    Uma viagem ao fundo da alma, não importa a desfocagem, não importa a raiva, aliás, esta é necessária em muitos momentos da vida. Através dela, muitas vezes, emergimos e marcamos presença e dizemos 'pronto' ou 'basta'.

    Tens uma forma de escrever que eu admiro e por aqui passarei sempre, mesmo que haja só silêncio...porque o silêncio também fala.

    Vejo ao lado algumas 'provocações', convites de leitura. :)

    Pepetela, conheço, já li alguns livros dele, nomeadamente, Yaka.
    Cabral Neto, já falaste dele aqui, num outro post. É boa altura para começar a lê-lo.
    García Marquez, torna-se necessário relê-lo, relembrá-lo, ele que se vê envolto na escuridão das suas memórias.

    Obrigada, Cantinho.

    Beijinhos.

    Olinda

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    1. Sim, concordo plenamente, "o silêncio também fala', e muito!
      Estamos sempre fazendo essas viagens, não é Olinda, acho que é um momento tão íntimo, particular e necessário...

      E obrigada por estares aqui, é sempre um prazer!

      Beijão!

      ;)

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  3. Viva!!! Voltaste inspirada e cheia de espelhos. Pelo jeito, a pausa foi reflexão.

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    1. Viva! Viva Fabi, como é bom te ver aqui também!

      Vamos ver até onde vai essa vontade de rabiscar, não sei se me libertei da desvontade ainda, rs...

      Beijão, Fabi, até sexta, dia 20, sei lá!

      ;)

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  4. Todo o espelho desnuda uma memória

    Todo o grito guarda um silêncio

    Toda a palavra é nascente e foz

    Toda a ausência é desformada sombra

    ___

    A intimidade de olhar
    Como prosa que se demora

    Impressivo e forte

    Bjo.

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    1. E você Filipe, parece ser o espelho da poesia!

      Um beijão e um obrigada pela presença sempre querida!

      ;)

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  5. o espelho quebrado multiplica a imagem. e em seu jogo de ocultação/revelação esculpe o verdadeiro rosto...

    beijo

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    1. Mas isso deveria ser segredo, rs. Dissipaste de forma indelével o texto, belíssima percepção, o que lhe é peculiar...

      Um beijão e é muito bom te ver aqui!

      ;)

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  6. Minha querida

    Por vezes é no silêncio acolhedor que nos encontramos...e é bom ficar assim flutuando entre o tempo e o espaço...mesmo que seja entre os cardos que nos ferem os pés...os muros que nos cortam os passos...na ilusão de todas as demoras...na inquietação de todos os gestos que ficam presos na memória da alma.
    Como sempre ler-te é viajar por dentro de mim.

    Um beijinho com carinho
    Sonhadora

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    1. Sim, o silêncio parece ser sempre um lugar seguro, e quantas vezes necessitamos dele? rs

      Fico feliz em saber que minha escrita lhe diz tanto, Sonhadora, além do grande prazer de recebê-la aqui.

      Um beijão!

      ;)

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  7. Somos sempre seres duais... inevitavelmente!

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    1. Por isso estamos na categoria humanos, quiçá, Manel??

      Obrigada, querido, pela presença sempre carinhosa e amiga!

      Beijão!

      ;)

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  8. Belíssimo texto reflexivo e escrutinador...

    )Aprecio muito as citações que coloca - admiro de coração a Clarice L.)

    Bjo :)

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    1. Clarice está sempre no meu criado-mudo, na bolsa, em mim...

      Obrigada pelo carinho e a visita, um beijão!

      ;)

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  9. Já tentei comentar este poema duas vezes e só me chegam palavras como: arre, misericórdia. Ambas finalizadas com uma exclamação. Achei muito pouco para ti, por isto desisti nas duas vezes. Mas, eis que me lembro da tua simplicidade e da crueza que teu poema envolve.
    Quem sou eu para teimar? Fica então com o melhor que posso te dizer: !!!!!!!!!
    Beijos.
    Magna

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    1. O melhor é você, Magníssima, aqui, fora daqui, sua percepção e generosidade, quem precisa de mais?

      Um beijão, querida, imenso, dia 20 tá chegando, lálálá!

      ;)))

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Prazer tê-lo/a no Canto, obrigada pela delicadeza de dispor do seu tempo lendo-me. Seja bem-vindo/a!

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