terça-feira, 15 de setembro de 2009

Situações

(imagem recolhida na intenet)

Uma noite em claro em qualquer aeroporto ou "estación de autobús”, dá tempo de ver, sentir e viver muitas coisas. Algumas situações vividas num intervalo de 0:30h às 8:00h, em Barcelona.
Situação um:
- Buona notte, vá bene?
Levantei o olhar do livro e deparei com um sujeito sorridente, e doido para puxar um papo, e de muita má vontade, respondi: buona notte! Baixei o olhar e continuei com a leitura do meu livro, que de tão interessante, devorei-o quase todo no voo a Barcelona, deixando umas páginas para me fazerem companhia durante a longa noite que viria.
O rapaz era insistente, de pé diante de mim, sem parecer querer perceber que eu estava ocupada e envolvida na minha leitura, pergunta:
- Sapere dove si há uma macchina per il café?
Olhei com cara de poucos amigos e respondi que sim, ao fundo do corredor. Ele não se deu por satisfeito e me ofereceu um café. Olhei em volta, o saguão estava animado, gente para lá e para cá, não senti perigo no ar, e a idéia do café não pareceu tão absurda assim, como de início pensei.
Dirigimo-nos à máquina, ele insistia em me convidar e como não sabia mexer naquilo direito, ficou para mim tal ação.

Sentamo-nos e ele contou-me a sua história. Chamava-se Edouard, era senegalês, estava na Europa há dez anos, tinha 34, duas filhas, três caminhões (esse era o eu inventário) e seu plano era montar uma empresa de transportes. A rota do traslado dos automóveis, era pelo Marrocos... Contou todo o percurso para chegar à Dakar. Estava indo à Marselha, havia sido transferido da Itália, e estava feliz, ia receber um salário maior. Era chegado a sua hora de ir, ele agradeceu pelo papo e antes de ir-se, disse: - mademoisele, nécessaire je n´ai pas à dire, d´autres semblent à Sofia Loren; le sourire, la bouche, la couleur de la peau, les cheveux, le regard. Pardon de parler em français, je ne comprends pas le portugais, espagnol ou anglais.
E eu lhe falei que o estava compreendendo, mas que eu discordava quanto a parte sobre a Sofia Loren (embora o elogio tenha me agradado, é claro!). O curioso é que não é a primeira vez, que aqui me falam isso... E pensei no apelo, na adulação, quando se deseja algo. E para encerrar a questão de vez, emendei: my boyfriend does not think too...

Situação dois:
- Bueños días!
Pensei com meus botões, de novo não, quase 8h da matina, e uma noite em claro, não quero outro papo e lenga-lengas corriqueiros em salas de esperas. Mas o sujeito não desistiu e encarou minha cara feia de sono, cansaço e de poucos amigos. Com um tíquete nas mãos, perguntou-me: - es española? Respondi com má vontade: - no! Uma resposta seca e quase inaudível. E ele era corajoso: - vás a Cartàgena? Outra vez um, no! Mas isso era pouco, porque ele, de novo: - mira, chica, yo tengo un billete, péro necesito cambiar para otra hora y otra fecha, aún que yo haga la compensación de la diferencia....
- Perdona, péro yo no te entiendo, se hablares despacio quien sabe puedo dicer alguna cosa, y yo consiga le ayudar?? Ele olhou-me começou tudo outra vez. Claro que eu o estava entendendo, só não queria papo. Naquele ínterim, passou um segurança, eu o chamei e lhe expus a situação, e lá se foram os dois em “seus eus ovais”...

Situação três:
- Por favor, esto autobús vá al aeropuerto Costa Brava? Era eu esbaforida, depois de chegar atrasada. E o jovem me olha e responde no bom e velho português do Brasil: não sei, só sei que estou aqui desde às 9h esperando um ônibus que me leve à Girona. Eu feliz: - ah, brasileiro de onde? Ele: ah, brasileira? Nem parece, nem tem sotaque (o jovem foi generoso, admito), nem jeito. Eu sou de Mato Grosso, e você? Respondi de onde era, agradeci e então a conversa fluiu solta. Ele perguntou o que eu estava fazendo aqui, há quanto tempo vivia, essas curiosidades básicas, quando encontramos um compatriota e estamos longe de casa há bem mais de uma semana. Aí foi a minha vez de perguntar: e você o que faz? Ele tranquilamente me olha nos olhos e responde: puto! Quase num murmúrio, e eu perguntei de novo que era para não ter dúvidas, e ele deu uma risada gostosa, e falou com calma e em claro tom: sou puto! Eu sou transformista, vivo disso aqui, estava cansado da vida difícil, quase miserável que eu tinha no Brasil, estou ilegal, e desde fevereiro; deu um tapinha na mala que estava descansando aos seus pés e disse que ali estava a menina que ele era, mostrou-me fotos das suas performances, contou da casa que tinha em Alicante, falou dos seus clientes e suas vontades; que homens de determinada nacionalidade gostava disso; de outra nacionalidade, daquilo; de um cliente alemão masoquista; mas a sua paixão era um árabe... Todavia ele gostava mais dos clientes que lhe pagavam para maquiá-los como mulheres; ou para usarem as suas coisas, assim, não lhe tocavam, e que ele cobrava por tudo... Contou-me que em uma ocasião foi difícil convencer um cliente que queria ir ao banco usando um vestido, e de braços dados com ele; que não pegava bem ele ir a tal instituição, daquela maneira.

Ele necessitava pedir algumas informações e perguntou se eu poderia fazê-lo, uma vez que não sabia falar bem o idioma. Tudo bem, eu respondi que perguntava. E seguimos conversando. Minha hora de ir, ele agradeceu-me por ouvi-lo e não ter tido nenhum preconceito. E a viagem até Girona foi em estado de letargia e reflexão, da noite que não dormi, das necessidades de sobrevivência e das escolhas que muitas vezes são frutos das nossas circunstâncias...

Para esse momento, trago Lobão, e essa é a música: Essa Noite Não!
A-d-o-r-o!

20 comentários:

  1. Boca,minha cara,

    Quantas situações para uma só noite,ainda que em claro!

    O sorriso da Sofia Loren,heim?
    Ainda que seja adulação do senegalês,parece que faz sentido,não é,moça?

    Que bom que saiu tudo bem na escrita!Que o sucesso prossiga e que as próximas noites sejam de bons sonos,suaves e reparadores.

    Beijos!

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  2. Ah, Boca!Que viagem!
    Pude sentir cada momento, pois me levaste junto para a sala de espera em teu minucioso e lindo relato. Para quem passa horas de sua vida em aeroportos, sabe muito bem como estas situações se apresentam. Cada encontro é uma outra história, uma vida, um destino. E depois, os idiomas... E a passagem sobre sua semelhança com Sofia Loren. Ah, que delícia.

    Com carinho
    Ila

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  3. Boca,

    Adoreiiiiiii!!!

    Suas expressões!
    Tornei-me seguidora!
    Beijo...

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  4. Perfeito!
    Lindo e leve, sutil e delicado.
    beijos querida dama.

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  5. Boca, você deve ser linda! Aliás, você é linda: rosto da Loren e uma personalidade daquelas...ácida, irônica..."Hay que endurecer, peró si perder la ternura".
    E tu também escreve bem pacas! Caramba!
    Obrigada, amiga, pelo grande incentivo!
    Lobão? Um menino-poeta imortal, amo de paixão!!!
    Beijosssss em profusão!
    (rssss, o senegalês caiu do cavalo, ou seria do avião?)

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  6. Max Coutinho deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Situações":

    Oi CB :D!

    Situação um: LOL ó meu Deus!! Fizeste bem em arrematar que o teu namorado não concorda que sejas parecida com a Sofia Loren (que homem atrevido, céus!)...a seguir pedir-te-ia o número de telefone.

    Situação dois: LOL qué? Quería cambiar su billete por lo tuyo; o simplesmente quería que le dijeras como hacer para cambiarlo?

    Situação três: que experiência fantástica! Adoro ouvir experiências dos outros, e amei como ouviste a sua história sem choque, sem problemas...Deus te abençoe!

    Olha, CB...já passei por muitos episódios de avião e aeroporto, mas este teu relato foi o máximo: amei :D!

    Aaaah, esta música é tão linda! A voz deste cantor é perfeita (dicção perfeita e tudo)!

    Beijosss

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    Postado por Max Coutinho no blog Canto da Boca em 17 de Setembro de 2009 16:53

    (Não sei o que fiz com seu comentário, Max, desculpe, por isso estou postando-o assim, beijinhos!)

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  7. Olá Canto da boca...


    Grato pelo comentário no metro quadrado das artes sobre os índios!

    Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante,
    de uma estrela que virá
    numa velocidade estonteante, canto da boca, estonteante...

    Estive por aqui

    Abraços!

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  8. vc conseguiu me levar junto naquele avião! mas eu estava com cara deslumbrada e me diverti com a diversidade dos personagens , em especial, com sua cara de poucos amigos! rs...
    Mas que noite, hein? Esta noite tb vai pro livro ,né?
    Beijitos

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  9. puxa vida, essa do seneganês foi dose pra leão, cosmopolita canto na boca palatal, das palavras de lavras, auroreal. vc sacaneou com ele, sutilmente, jogando-lhe na cara o inglês que ele não falava... de qualquer forma, são sempre muitas as situações por que passamos e são sempre muitas as situações que causamos e ainda melhor, como no seu caso, é sempre muito bom vivermos as mais diversas situações, ainda que no verso do reverso.
    saudações,
    luis de la mancha

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  10. muito, muito bom.
    Gosto daqui, gosto de ti.
    tenha uma feliz semana.
    Maurizio

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  11. Muito bom, adorei!
    Aliás, gosto muito disso tudo.
    Beijo

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  12. Não mereço tanto, flor. Desse jeito, você acaba comigo. Obrigada, mais uma vez pelo carinho em letras. Claro que você pode adicionar o Turbante ao Canto. Na verdade, a gente já se "adicionou", faz tempo.
    Beijo grande
    Naire

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  13. Uau, maravilhoso!
    Quanto poesia em cada palavra sua.
    Beijos amiga.

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  14. e era para eu estar ai ao lado. para ser exato, madrid. mas uma fatalidade poética me tirou disso.

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  15. minto, esta em cabo verde? é... +- perto. rs

    bjs!

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  16. Boquita, querida
    Como é bom receber tanto carinho de quem a gente sequer sabe o nome. Como diz outro querido, "me afeiçoei a você", flor.
    Beijo grande

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  17. Está dito.

    Beijos e que lindo poema!!!!

    Maria maria

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  18. Seu espaço é incrível, um lugar a se parar para ler cada postagem com atenção e carinho. Muito lindo.
    Fiz em sua narrativa uma linda viagem a Cabo Verde que, confesso até meio envergonhada, conhecia pouquissimo. Mas adorei. O povo, as ilhas, os costumes parecidos com os de minha infância, de gente amiga, cadeiras nas calçadas, todo mundo irmanado...
    Obrigada por esses momentos.

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  19. Gosto muito, mas muito mesmo, quando escreves em forma de crônica. Nesse tipo de texto ressaltas profundamente tua capacidade de observvação, tua sensibilidade, teu olhar performativo. E tudo isso nos vem num jorro de palavras acertadas, num ritmo narrativo certeiro. Enfim, por tudo isso teu texto nos adere fortemente na memória.

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  20. Mana, vc retirou algumas poesias do blog? Passei a noite revisitando seus escritos, dos últimos aos primeiros, e juro que senti a falta de um monte deles!

    Beijão

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