Uma noite em claro em qualquer aeroporto ou "estación de autobús”, dá tempo de ver, sentir e viver muitas coisas. Algumas situações vividas num intervalo de 0:30h às 8:00h, em Barcelona.
Situação um: - Buona notte, vá bene?
Levantei o olhar do livro e deparei com um sujeito sorridente, e doido para puxar um papo, e de muita má vontade, respondi: buona notte! Baixei o olhar e continuei com a leitura do meu livro, que de tão interessante, devorei-o quase todo no voo a Barcelona, deixando umas páginas para me fazerem companhia durante a longa noite que viria.
O rapaz era insistente, de pé diante de mim, sem parecer querer perceber que eu estava ocupada e envolvida na minha leitura, pergunta:
- Sapere dove si há uma macchina per il café?
Olhei com cara de poucos amigos e respondi que sim, ao fundo do corredor. Ele não se deu por satisfeito e me ofereceu um café. Olhei em volta, o saguão estava animado, gente para lá e para cá, não senti perigo no ar, e a idéia do café não pareceu tão absurda assim, como de início pensei.
Dirigimo-nos à máquina, ele insistia em me convidar e como não sabia mexer naquilo direito, ficou para mim tal ação.
Sentamo-nos e ele contou-me a sua história. Chamava-se Edouard, era senegalês, estava na Europa há dez anos, tinha 34, duas filhas, três caminhões (esse era o eu inventário) e seu plano era montar uma empresa de transportes. A rota do traslado dos automóveis, era pelo Marrocos... Contou todo o percurso para chegar à Dakar. Estava indo à Marselha, havia sido transferido da Itália, e estava feliz, ia receber um salário maior. Era chegado a sua hora de ir, ele agradeceu pelo papo e antes de ir-se, disse: - mademoisele, nécessaire je n´ai pas à dire, d´autres semblent à Sofia Loren; le sourire, la bouche, la couleur de la peau, les cheveux, le regard. Pardon de parler em français, je ne comprends pas le portugais, espagnol ou anglais.
E eu lhe falei que o estava compreendendo, mas que eu discordava quanto a parte sobre a Sofia Loren (embora o elogio tenha me agradado, é claro!). O curioso é que não é a primeira vez, que aqui me falam isso... E pensei no apelo, na adulação, quando se deseja algo. E para encerrar a questão de vez, emendei: my boyfriend does not think too...
Situação dois: - Bueños días!
Pensei com meus botões, de novo não, quase 8h da matina, e uma noite em claro, não quero outro papo e lenga-lengas corriqueiros em salas de esperas. Mas o sujeito não desistiu e encarou minha cara feia de sono, cansaço e de poucos amigos. Com um tíquete nas mãos, perguntou-me: - es española? Respondi com má vontade: - no! Uma resposta seca e quase inaudível. E ele era corajoso: - vás a Cartàgena? Outra vez um, no! Mas isso era pouco, porque ele, de novo: - mira, chica, yo tengo un billete, péro necesito cambiar para otra hora y otra fecha, aún que yo haga la compensación de la diferencia....
- Perdona, péro yo no te entiendo, se hablares despacio quien sabe puedo dicer alguna cosa, y yo consiga le ayudar?? Ele olhou-me começou tudo outra vez. Claro que eu o estava entendendo, só não queria papo. Naquele ínterim, passou um segurança, eu o chamei e lhe expus a situação, e lá se foram os dois em “seus eus ovais”...
Situação três: - Por favor, esto autobús vá al aeropuerto Costa Brava? Era eu esbaforida, depois de chegar atrasada. E o jovem me olha e responde no bom e velho português do Brasil: não sei, só sei que estou aqui desde às 9h esperando um ônibus que me leve à Girona. Eu feliz: - ah, brasileiro de onde? Ele: ah, brasileira? Nem parece, nem tem sotaque (o jovem foi generoso, admito), nem jeito. Eu sou de Mato Grosso, e você? Respondi de onde era, agradeci e então a conversa fluiu solta. Ele perguntou o que eu estava fazendo aqui, há quanto tempo vivia, essas curiosidades básicas, quando encontramos um compatriota e estamos longe de casa há bem mais de uma semana. Aí foi a minha vez de perguntar: e você o que faz? Ele tranquilamente me olha nos olhos e responde: puto! Quase num murmúrio, e eu perguntei de novo que era para não ter dúvidas, e ele deu uma risada gostosa, e falou com calma e em claro tom: sou puto! Eu sou transformista, vivo disso aqui, estava cansado da vida difícil, quase miserável que eu tinha no Brasil, estou ilegal, e desde fevereiro; deu um tapinha na mala que estava descansando aos seus pés e disse que ali estava a menina que ele era, mostrou-me fotos das suas performances, contou da casa que tinha em Alicante, falou dos seus clientes e suas vontades; que homens de determinada nacionalidade gostava disso; de outra nacionalidade, daquilo; de um cliente alemão masoquista; mas a sua paixão era um árabe... Todavia ele gostava mais dos clientes que lhe pagavam para maquiá-los como mulheres; ou para usarem as suas coisas, assim, não lhe tocavam, e que ele cobrava por tudo... Contou-me que em uma ocasião foi difícil convencer um cliente que queria ir ao banco usando um vestido, e de braços dados com ele; que não pegava bem ele ir a tal instituição, daquela maneira.
Ele necessitava pedir algumas informações e perguntou se eu poderia fazê-lo, uma vez que não sabia falar bem o idioma. Tudo bem, eu respondi que perguntava. E seguimos conversando. Minha hora de ir, ele agradeceu-me por ouvi-lo e não ter tido nenhum preconceito. E a viagem até Girona foi em estado de letargia e reflexão, da noite que não dormi, das necessidades de sobrevivência e das escolhas que muitas vezes são frutos das nossas circunstâncias...
Para esse momento, trago Lobão, e essa é a música: Essa Noite Não!
A-d-o-r-o!
Boca,minha cara,
ResponderExcluirQuantas situações para uma só noite,ainda que em claro!
O sorriso da Sofia Loren,heim?
Ainda que seja adulação do senegalês,parece que faz sentido,não é,moça?
Que bom que saiu tudo bem na escrita!Que o sucesso prossiga e que as próximas noites sejam de bons sonos,suaves e reparadores.
Beijos!
Ah, Boca!Que viagem!
ResponderExcluirPude sentir cada momento, pois me levaste junto para a sala de espera em teu minucioso e lindo relato. Para quem passa horas de sua vida em aeroportos, sabe muito bem como estas situações se apresentam. Cada encontro é uma outra história, uma vida, um destino. E depois, os idiomas... E a passagem sobre sua semelhança com Sofia Loren. Ah, que delícia.
Com carinho
Ila
Boca,
ResponderExcluirAdoreiiiiiii!!!
Suas expressões!
Tornei-me seguidora!
Beijo...
Perfeito!
ResponderExcluirLindo e leve, sutil e delicado.
beijos querida dama.
Boca, você deve ser linda! Aliás, você é linda: rosto da Loren e uma personalidade daquelas...ácida, irônica..."Hay que endurecer, peró si perder la ternura".
ResponderExcluirE tu também escreve bem pacas! Caramba!
Obrigada, amiga, pelo grande incentivo!
Lobão? Um menino-poeta imortal, amo de paixão!!!
Beijosssss em profusão!
(rssss, o senegalês caiu do cavalo, ou seria do avião?)
Max Coutinho deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Situações":
ResponderExcluirOi CB :D!
Situação um: LOL ó meu Deus!! Fizeste bem em arrematar que o teu namorado não concorda que sejas parecida com a Sofia Loren (que homem atrevido, céus!)...a seguir pedir-te-ia o número de telefone.
Situação dois: LOL qué? Quería cambiar su billete por lo tuyo; o simplesmente quería que le dijeras como hacer para cambiarlo?
Situação três: que experiência fantástica! Adoro ouvir experiências dos outros, e amei como ouviste a sua história sem choque, sem problemas...Deus te abençoe!
Olha, CB...já passei por muitos episódios de avião e aeroporto, mas este teu relato foi o máximo: amei :D!
Aaaah, esta música é tão linda! A voz deste cantor é perfeita (dicção perfeita e tudo)!
Beijosss
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Postado por Max Coutinho no blog Canto da Boca em 17 de Setembro de 2009 16:53
(Não sei o que fiz com seu comentário, Max, desculpe, por isso estou postando-o assim, beijinhos!)
Olá Canto da boca...
ResponderExcluirGrato pelo comentário no metro quadrado das artes sobre os índios!
Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante,
de uma estrela que virá
numa velocidade estonteante, canto da boca, estonteante...
Estive por aqui
Abraços!
vc conseguiu me levar junto naquele avião! mas eu estava com cara deslumbrada e me diverti com a diversidade dos personagens , em especial, com sua cara de poucos amigos! rs...
ResponderExcluirMas que noite, hein? Esta noite tb vai pro livro ,né?
Beijitos
puxa vida, essa do seneganês foi dose pra leão, cosmopolita canto na boca palatal, das palavras de lavras, auroreal. vc sacaneou com ele, sutilmente, jogando-lhe na cara o inglês que ele não falava... de qualquer forma, são sempre muitas as situações por que passamos e são sempre muitas as situações que causamos e ainda melhor, como no seu caso, é sempre muito bom vivermos as mais diversas situações, ainda que no verso do reverso.
ResponderExcluirsaudações,
luis de la mancha
muito, muito bom.
ResponderExcluirGosto daqui, gosto de ti.
tenha uma feliz semana.
Maurizio
Muito bom, adorei!
ResponderExcluirAliás, gosto muito disso tudo.
Beijo
Não mereço tanto, flor. Desse jeito, você acaba comigo. Obrigada, mais uma vez pelo carinho em letras. Claro que você pode adicionar o Turbante ao Canto. Na verdade, a gente já se "adicionou", faz tempo.
ResponderExcluirBeijo grande
Naire
Uau, maravilhoso!
ResponderExcluirQuanto poesia em cada palavra sua.
Beijos amiga.
e era para eu estar ai ao lado. para ser exato, madrid. mas uma fatalidade poética me tirou disso.
ResponderExcluirminto, esta em cabo verde? é... +- perto. rs
ResponderExcluirbjs!
Boquita, querida
ResponderExcluirComo é bom receber tanto carinho de quem a gente sequer sabe o nome. Como diz outro querido, "me afeiçoei a você", flor.
Beijo grande
Está dito.
ResponderExcluirBeijos e que lindo poema!!!!
Maria maria
Seu espaço é incrível, um lugar a se parar para ler cada postagem com atenção e carinho. Muito lindo.
ResponderExcluirFiz em sua narrativa uma linda viagem a Cabo Verde que, confesso até meio envergonhada, conhecia pouquissimo. Mas adorei. O povo, as ilhas, os costumes parecidos com os de minha infância, de gente amiga, cadeiras nas calçadas, todo mundo irmanado...
Obrigada por esses momentos.
Gosto muito, mas muito mesmo, quando escreves em forma de crônica. Nesse tipo de texto ressaltas profundamente tua capacidade de observvação, tua sensibilidade, teu olhar performativo. E tudo isso nos vem num jorro de palavras acertadas, num ritmo narrativo certeiro. Enfim, por tudo isso teu texto nos adere fortemente na memória.
ResponderExcluirMana, vc retirou algumas poesias do blog? Passei a noite revisitando seus escritos, dos últimos aos primeiros, e juro que senti a falta de um monte deles!
ResponderExcluirBeijão