quarta-feira, 15 de julho de 2009

A vida na rotunda, na avenida...

(imagem colhida na internet)


A vida não passa sem nos trazer reflexões, ou nos deixar estarrecidos diante dos acontecimentos, que para alguns pode ser banal demais até. O que não é o meu caso, não sei se para o bem ou para o bom; para o mau, ou mal; mas certas situações me deixam estupefacta e pensativa.

Caminhando pela margem da rotunda da Boa Vista, apressada, porque o vento frio, apesar do sol, parece lâmina a cortar-me a carne, em mim na carne, a minha carne (nessas horas me pergunto como o ser humano pode ser tão adaptável assim?)… Não percebi de imediato a discussão que se dava ali entre duas mulheres. Escutei vozes alteradas mas não percebi de onde vinham concretamente, até que uma senhora (devia beirar os 60 anos), meio descompensada, partiu pra cima de outra (esta já passava dos 70 anos, seguramente), e as duas começaram a esbofetearem-se no meio da rua, para os transeuntes surpresos e surpreendidos como eu, a ação das senhoras, deixou-nos sem ação, porque parecia uma cena de um filme de quinta categoria (referenciado por mim) que se passava em câmera lenta…

Um garoto assustado, choramingava e dizia à sua mãe:

- Vamos, mamãe, vamos!

- Vamos filho, vamos!

- Alguém aí, faça alguma coisa, pá! Eu estou com uma criança e está assustada!

- Toda a gente só dá uma vista d’ olhos e nada fazem?

E ninguém fazia nada, enquanto isso as duas mulheres puxavam os cabelos uma da outra, falavam coisas sem nexo aos ouvidos de quem não as conheciam, chutavam ora o ar; ora a perna uma da outra. De repente, num golpe de sorte (?), a mais jovem estapeou a cara da mais velha, e o sangue jorrou, imagino que as unhas atingiram um vaso sanguíneo, e por ser um local mais sensível, começou a sangrar de imediato. As duas então deitaram ao chão.

- Deixa meu pai em paz, um senhor de 83 anos, têm filhos e netos!

- O que estás a dizer?

- Não sabes? Ah, sabes sim, sei que sabes! Quer aproveitar-se do meu pai, deixe-o em paz e vá cuidar da sua vida, ora pois! Vou mostrar-te do que sou capaz!

-Nada sei! Não sei do que estás a dizer!

Isso pronunciado entre os dentes, com um ódio que saltava das pupilas dilatadas dos seus olhos. A situação já se tornara impossível, até que quatro homens, certamente os mais corajosos e sensatos dentre todos os presentes, não suportaram mais ver aquela fábula deprimente, e tomaram uma atitude: foram separar as senhoras raivosas e cheias de infelicidade. Percebam: quatro homens fortes, tenazes e destemidos, tiveram dificuldade para impedir que as duas senhoras continuassem aquele triste espetáculo de agressão e violência. Não se dando por satisfeita, a mais jovem, mordeu a mão de um dos cavalheiros que a desvencilhava da senhora mais idosa, que por sua vez, puxava-lhe os cabelos a quase trazer o couro cabeludo entre os dedos…

Quando deu por si, e saiu do seu transe de ira, a mais jovem, notou enfim que não teria mais como dar vazão à sua destemperança, de um salto levantou-se, ajeitou a saia; o casaco; os cabelos; e saiu resmungando algo incompreensível. Enquanto a mais velha, lívida e transparente, limpava o sangue do seu rosto, sem emitir um sinal de emoçao (nunca vi tanta frieza diante de um ataque de fúria), ficou rente à parede, silenciosa. Alguns polícias chegaram e eu já estava a dobrar a Av. de França…

E fui andando até o Carvalhido, pensando, porque eu precisava pensar. Em mim, nelas, e em tudo que eu presenciara, além de coisas que não presencio, ou das que vejo e também emudeço.

Parece um enredo de alguma peça do Nélson Rodrigues (que por sinal, tem uma peça dele em cartaz aqui), mas não é, ou é, a vida real, latejando, pulsando e rompendo ódios e sentimentos outros guardados até a explosão. Um micro-mundo, que avança violento sobre outro, pela ação corrupta, impaciente e baseada no descontrole, na vitória do não diálogo, que não cede, não concede e nem busca uma negociação, um porquê, simplesmente agride. Será que a agressora tem algum distúrbio de personalidade; prediposição natural (?) à violência; desconfiança; competição? O que há no subjacente dessa história de agressividade, que jamais saberemos? Uma amostragem do macro-mundo, onde se perdeu completamente a via da comunicação, da negociação, e eclodem as guerras, as atrocidades imperialistas… Fiquei pensativa sobre o mundo.


E escuto o João Pedro Pais: Um Resto De Tudo, vamos escutar a canção do gajo e reflitamos sobre nós e o mundo que estamos a construir...



16 comentários:

  1. De passagem rápida para um beijo de saudade.
    Passarei com mais tempo...Quando regressar de vez.

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  2. Muitas vezes a realidade nos parece ficção, né? De tão grotesca que é!
    Cenas assim parecem ser universais. Não importa se a calçada é florentina, portuguesa ou o chão batido do nosso sertão. É a natureza humana mostrando na ira o nosso instinto animal!
    Beijo quridona!

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  3. Oi,Boca!

    É mesmo chocante a cena de intolerância e violência que você narra aqui,um dos enredos,infelizmente,desta grande peça que é a vida.
    E,nas suas reflexões,diagnósticos perfeitos dos quais gosto de destacar um,quando sou eu a refletir situações análogas:a vitória do não diálogo.

    É sempre bom vir aqui...o tema de hoje não é ameno,mas o que é ameno nessa vida,minha cara?Nem o Azul Mirtilo nos garante amenidades,não é mesmo?É delicioso sempre sentir as palavras e o hálito fresco que saem dessa boca.
    Uma ótima semana pra você.
    Beijos.

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  4. A intolerância parecem mostrar que o ser humano perde os resquícios de civilidade. Ser intolerante é revelar uma face - talvez a mais comum -, que leva a atos tresloucados, sem o menor sentido cristão. É homem sendo o lobo do homem. Que pena¹

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  5. Imagine essa mesma força, essa mesma energia entre dois sobreviventes da miserável exclusão pela fome, pela doença, pela vida na rua ou na favela... Se duas distintas senhoras de um país europeu, bem alimentadas, com boa escolaridade, com alguma crença ou religiosidade, se digladiam como duas feras, imagine os embrutecidos pela fome na África. Que humanidade está produzindo isso que chamamos de civilização?

    Grato pelas visitas ao Eu-lírico.
    Grato pela troca de idéias.
    Dá um abraço no meu xará de cabeça.

    Fica bem!

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  6. Amiga, dona viajadeira...rs É realmente uma cena que dá muito pano prá manga no pensamento...Duas senhoras se agredindo fisicamente. Mas, não me choca essa manisfestação exacerbada de "selvageria", acredita? Acho que a criatura humana é capaz de tudo! E, quando "cegada" pelo ódio, menina!!!, o barbarismo que habita em cada um de nós aflora...Há que se policiar dia e noite...essa natureza nossa tão frágil e vulnerável.
    Beijos, moça linda!
    Dora

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  7. Triste realidade a que nos cerca, com a qual a maioria das pessoas parece cooperar, não só pela falta de posição favorável à paz, mas pela simples indiferença. Só o fato de refletir sobre isso já é um gesto de humanidade. Quando refletimos não conseguimos ficar de braços cruzados num mundo tão carente de amor.

    Parabéns e obrigado pela visita!

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  8. Uma ceca surrealista como essa é capaz de deixar até os postes reflexivos. Acho que eu ficaria sem saber o que fazer, talvez chorasse, lembrando que qualquer de nós está sujeito a cair numa dessas. Meu beijo.

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  9. E estavas numa esquina de Lisboa, ora, pois? Porque o que as raparigas estavam a falar pareciam impropérios ditos na mais escorreita linguagem lusitana!

    Saudades de teu canto de boca: o assustado diante dessas guerras particulares que nos deixam tantas incógnitas (seria uma briga por causa de um "caso", um 'affair' na terceira idade?!), e o belo, que deixa comentários sempre ricos e doces!

    Abração e feliz dia do amigo atrasado, direto da Lua...

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  10. Não sei mais onde devo te escrever. Hoje vai ser aqui. O mundo que conhecemos, que estás há desbravarar, talvez seja tão pequeno, da falta que me faz! Te procuro e não te encontro! Te desejo e não te tenho! Eu grito todo dia a mesma frase "Saia do meu pensamento, desça até o meu mundo que eu quero te ver". Que puta saudades, com sinto falta de ti. Pra ti, o vento que vai do Sul é fraco, muito fraco, quase nem o sentes.
    Beijos Val, um zilhão deles.
    Saudades
    Schummy, J.P., Benicio, João Pedro e o que quiseres mais....

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  11. E o tempo nos ensina, junto com a natureza, a importância de mudar para melhor.

    Obrigada pela visita.

    Beijos e um ótimo final de semana

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  12. Ana, é sempre um prazer te ler aqui ou tomar Um Chá no Deserto, contigo. Que o retiro já esteja no final e regresses super-bem.
    Um beijão!
    ;)

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    BelEuza de pessoa, ultimamente me sinto personagem de muitos filmes, a vida parece-me sempre um enredo felliniano... Mas ainda hoje eu falava sobre isso: o nosso controle, descontrole diante de situações extremas, as quais não sabemos como agir.
    Beijão e sempre muito obrigada por existires!
    ;)

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    Amarísio, a violência em todos os níveis, choca sim, e ando cada vez menos intolerante para isso, e o surpreendente é que é o sentimento geral, mas parece que estamos todos cartáticos diante de nós mesmos, afinal a violência, a intolerância, a xenofobia e outros quemais, são ações (ou falta)nossas, mas andemos com a vida, quem sabe escreveremos histórias mais doces e menos desumanas?
    Beijos, e obrigada pela dialética sempre inteligente e sentida.
    ;)

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  13. Regis, a mim qualquer tipo de violência me desnorteia, a alheia, as que eu cometo, mas presenciar duas anciãs digladiando-se me deixou passada com a humanidade (?)
    Obrigada pela visita, um abração e ótima semana que se inicia!!
    ;)

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    Eurico, imagino que essa peleja não iria muito longe se fosse aí, porque num instante "a turma do deixa disso", interferiria, aqui há um medo imenso da interferência...
    Mas que isso acabou com meu resto dia, na altura do acontecido, ah, acabou...
    E olha, vizinho, a miséria também assola por terras "pessonianas", quiçás, aqui em Europa, Portugal é o país que mais sofre com a tal da crise, que beneficia sempre os poderosos, em detrimento da maioria... Como sempre, e em África, apesar das dificuldades seculares, e da pobreza, não vi fome e muito menos esse tipo de miséria humana, lá, há o respeito pelo humano, ao menos entre os mortais comuns africanos, o que já não posso dizer das autoridades...

    Cheiro, Compadre, e para dona orquídea também!
    ;)

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    Dorinha, a cena deu muitos nós também, sobretudo, uma paralisia inesperada, porque foi brutal presenciar duas anciãs, naquele estado de "incivilidade", soltando as feras com uma fúria, que nem mesmo os bichos irracionais o fariam com os da sua categoria, ou espécie. A cegueira aflora e deflora, foi triste!

    Um beijão, flor!

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  14. Rodrigo, belíssima reflexão a sua, quem sabe o mundo (nós, os humanos?)esteja/estejamos passando por uma expurgação, depuração, e a forma que se dá, é assim, dolorosa?
    Vamos construir dias melhores sim.
    Obrigada pela visita, e gostei imenso do seu blogue, e voltarei ao seu espaço com prazer.
    Abração e ótima semana!
    ;)

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    Sim, Jota, foi uma cena surreal, algumas poucas pessoas, eu entre elas, ficaram/ficamos chocados, mas a maioria não se preocupa, é cada um cuidando da sua vida e já está!
    Obrigada pela visita e pelas palavras, abração e ótima semana!
    ;)

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    Não, Dilberto, isso se deu na "Cidade Invicta", mas poderia ter sido em qualquer grande (e pequena) cidade, será?
    Elas estavam a falar sim, em luso, mas sabe eu tenho cá uma suspeita que a briga se deu por ciúmes, da filha em relação a senhora que deve ser um "affair" do senhor, mas claro que existem mais coisas no subjacente que jamais saberemos, e penso que passa pela questão do dinheiro também, tendo uma "namorada", não vai sobrar dinheiro para os filhos, mas isso são suposições minhas, não tenho nenhum elemento que comprovem-nas.... Obrigada, felizes dias para todos nós.

    Abração e que tenhas uma ótima semana!
    ;)

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  15. Jota Pê, o mundo é pequeno e grande ao mesmo tempo, porque muitas vezes, me perco e me acho dentro do meu mundo, dos meus sonhos, que são tantos, multicolores, multiformes, com os mais variados sabores... Realizei alguns, mas sei de tantos que não realizarei, e nem por isso desistirei de sonhar, a vida para mim sempre teve o sabor de inesperado de imprevisível. O vento aqui é sempre frio, e muitas vezes cortantes, deixando no sulco desse rasgo, a marca, o sangue da saudade e não tem canção, nem sal nem mar que o estanque, mas sigo, em paz, cantarolando, tentando e muitas vezes conseguindo, ser feliz.

    Um beijo, dias lindos e felizes!
    ;)

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    Sim, Maria, a natureza é a nossa melhor escola, pena que nem sempre nos portamos como bons aprendentes... Mas a nossa estirpe é das que não desistem, bem sei, risos.
    Obrigada eu!
    Te desejo uma semana produtiva e feliz!

    Beijinhos, querida!

    ;)

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  16. Putz! Que crônica, senhorinha! Muito, mas muito boa mesmo! Não sei, aqui e agora, o que acrescentar mais a essas minhas palavras de um gago espanto admirado...
    Bom, toda lingiagem acaba por ser tautológica: que belíssima crônica!!
    Parabéns.

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Gaza

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