terça-feira, 11 de abril de 2017

História de nós dois

  "Saudade é um pouco como fome. 
Só passa quando se come a presença".
Clarice Lispector in Aprendendo a Viver (imagens). p. 19

imagem: amedeo modigliani

Se você sabia que não existiríamos porque deixou brotar sua existência em mim? 
Serei agora eu sem ti ao meu redor.
Com aquele espaço na noite e um grande vazio ao despertar todas as manhãs.
Adormecer talvez seja a hora mais triste dos meus dias, porque estou desabitada da sua presença física que preenchia todos os meus vãos. 
Todas as noites me pego lhe esperando, mesmo sabendo que não virás. 
Todas as noites fecho os olhos e vejo o seu rosto colado ao meu e aquele sorriso que deixava ainda mais miúdo, os seus olhos de jabuticaba.
De certo modo não te foste - assim com todas as contradições -, já que lhe guardo em todos os meus sentidos - emaranhado entre os lençóis, nosso cheiro impregnado no ar e nós desvestidos -. 
Fiz das nossas horas, os anos que não teremos, a continuidade que não viveremos, fiz das nossas horas  uma história para nós dois - que não terminará com a sua partida. 
Fiz deste ínfimo tempo nossa eternidade.
Não tenho mais sede do mundo.
Não reclamo a pressa para que tudo passe logo.
Não quero apagar as tantas descobertas.
Os segredos só nossos.
Os desejos loucos que murmurávamos dentro das nossas bocas.
Quero guardar o brilho dos nossos olhos quando nos descobrimos um no outro.
Quanta emoção desenhamos na pele, nos poros, no riso.
Quanto nos entregamos e aceitamos?
Alguma pequena escuridão, que recebeu toda a luz que emanávamos de coração para coração, desde então. 
Tudo existe, porque nasceu antes na alma.
Consola-me uma lágrima solidária e furtiva, que escorre no canto do olho, e deságua sal no mar dessa saudade.

Recife, XXVII - I - MMIV

Amália Rodrigues, Com Que Voz

2 comentários:

  1. Tu, Lispector, Amália...
    Quanto prazer senti aqui ao ler-vos e ao ouvir a bela voz de Amália.
    No fim há sempre algo que fica, das trocas, das entregas e da vida experienciada.

    Boa Páscoa, amiga.

    Beijinhos

    Olinda

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