domingo, 3 de julho de 2011

e lá "onde o judas perdeu as botas"..

o dia amanheceu normal como sempre, como todos os outros. pendências para acertar, resoluções externas, definições com o engenheiro, checklist - é chegado o momento de finalizações, enfim -, a baritação,  a cadeira, o compressor, a porta do laboratório, sala disso, sala daquilo... pós-almoço, tempo quente, quase derretendo e o convite:
- queres ir passear de lancha?
nem pensei, respondi na lata: quero! vou só checar uns telefonemas, dar umas orientações e estarei pronta.
o passeio, a travessia para a outra margem do rio, e uma parada naquela areia branquinha e fina, uma vontade de misturar-me com ela e descer rio abaixo... sentei-me à margem e fiquei contemplando o prenúncio do por do sol, as cores que se alternavam, uma paisagem quase comum, se não fosse pelo céu cinzento, raiado de laranja incandescente e o rio deslizando tranquilo naquele fim de tarde, e o pensamento longe, tão longe que quase não o retomo. a impressão que tive era que o vento sussurrava aos meus ouvidos, me inquirindo:
- como é o seu nome?
- v., e o seu?
- e., você sabe nadar?
- hunrum. 
- e por que você não nada? 
- ah, tenho medo de contrair esquistossomose...
- esqui o quê?
- barriga d´água, doença do caramujo,  "xistose".
- ah, já sei, uma pessoa morreu disso.
- você quer olhar o rio?
- mas eu já estou olhando
- não, a gente olha o rio é de cabeça pra baixo, ele fica mais bonito! quer ver?
-quero! vamos!
me pus a plantar bananeira com o e. e de fato o rio parece outro. passamos a conversar naquela posição, perguntava-me tudo, e dizia-me tudo, falante, divertido, agradável, cheio de curiosidades, queria saber se eu gostava de sol, porquê eu tinha a mesma cor da areia, porquê meu cabelo era assim, assado, porquê eu falava diferente dele... milhões de indagações para um menino esperto de apenas seis anos de idade... e uma curiosidade do tamanho do mundo.
algum tempo depois, decidiu pular para dentro de uma fenda na areia, e ficou escavando a terra com as mãos, convidando-me para fazermos "castelos de pés" - cobre-se o pé com com areia úmida, e depois, devagar puxa-se o pé, sem desmanchar a tal construção, e vai-se fazendo vários destes, todos próximos, os tais "castelos de pés"-, achei divertido aquilo tudo, e pulei para dentro da fenda com ele e tentei edificar um feudo, insucesso total, ao contrário do garoto.
- eu agora vou tomar banho e jantar, minha mãe tá chamando, tchau, moça!
- tchau, e prazer viu?
recebi um sorriso farto como resposta, um aceno de mão e algumas "estrelas" puladas na areia...(ele todo rajado de areia, descalço, um calção surrado, pulou no rio, mergulhava, fazia a festa, diluía-se junto, fundia-se com a água, depois saiu e sumiu).
sentei-me outra vez à beira do rio, desta feita, no interior de uma canoa, e deixei os meus pés dentro da água, e brincava de fazer movimentos circulares com os pés, para ver o banzeiro na superfície. a.c. aproxima-se e pergunta se pode entrar no rio, respondo que sim, desde que ela não se afaste, afinal não conhecemos a profundidade dele, nem tampouco a força da correnteza, e além do mais já estava escurecendo...
enquanto me aquieto na canoa, olhando aquela natureza tão familiar, a pergunta chega repetidamente como um eco:
- ela já é batizada?
virei-me e deparei-me com uma menina de olhos vivazes, amendoados, castanhos, cabelos longos, e uma vontade louca de sair da sua mesmice relacional, conversar com uma pessoa desconhecida e finalmente contar as suas histórias, fortalecer a própria crença a partir do imaginário coletivo.
- sim, é, sim, por quê?
- porque se ela não for, ela não pode tomar banho às seis horas da tarde.
-e não? e por quê não?
- "porque senão a mãe d´água vem buscar ela"
- buscá-la, como assim?
- é que qualquer pessoa se não for batizada, não pode tomar banho às seis horas da tarde, a mãe d ´água vem buscar na hora, e nem vemos quando arrasta a pessoa pro fundo do rio e nunca mais a gente vê, sabia?
- sabia não... oxente!
- pois é, e a mão dela é fria e ligeira. eu já sou batizada por isso eu banho qualquer hora, mas a hora que eu mais gosto é dez da noite, a água tá morninha e boa! e também esse rio é cheio de cobras e jacarés...
(meti meus pés pra dentro da canoa e fiquei ali observando aquela menina, cheia de vida, conversadora, contando os "causos", as histórias que sua avó, mãe, as pessoas da comunidade, contam/contavam e a força da oralidade, ficamos conversando sobre tudo, ela estudava em dois turnos, duas séries diferentes, "só por causa de uma matéria - matemática" - ; como se constrói uma pipa; o seu cão que nadava léguas naquele rio; e que as pessoas diziam que o irmão comia cobra, e ela rebatia veementemente essa acusação, ele apenas matavam-nas, tratavam-nas, deixavam-nas limpinhas, e só guardava a gordura delas. mas que ela gostava mesmo era da carne de jacaré; e que em sua casa havia quatro tatus, mas um fugira, outro a família comera, um terceiro morrera de raiva por ter sido aprisionado, e o quarto estava lá,  e era ela quem cuidava, alimentava, etc...)
- mas olha, dona, sabia que se alguém levar para sua casa os ovos de uma cobra, ela vai buscar na sua casa, à meia noite? a pessoa pode morar onde morar, mas a cobra vai atrás.
- eita, é mesmo? sabia não... mesmo sem ter o endereço a cobra vai atrás?
(confesso que num ímpeto quase indaguei se a cobra tinha gps)
perguntei-lhe seu nome: a., sua idade, o que mais gostava de fazer, etc. ficamos proseando com bastante entusiasmo, até que ela se despede, ia ajudar a mãe na banca - vender mingau de milho, munguzá -. e aproveitei para tirar a.c. da água, e subir para comer um delicioso peixe frito, acompanhado daquela "cerva" geladíssima.
o céu estava estrelado, luzes difusas na outra margem, temperatura amena, e na mesa, uma conversa boa, e ótimas companhias.
quando já estamos nos despedindo, avisam-me: "a., tá perguntando se a senhora não quer um copo de mingau"? eu já nem podia mais ver comida na minha frente, mas como rejeitar uma oferta tão carinhosa como aquela?
- sim, claro que sim, com muito gosto!
nessa hora fico toda "cheia de dedos", e se eu perguntar quanto custa, será que a menina ficaria ofendida? perguntava-me, e respondia-me imediatamente: sei não, será? decidi arriscar e perguntei. docemente ela disse que não precisava pagar não, ela estava me dando. mas como ser justa diante de uma situação dessas? afinal ela não auxiliava a mãe por lazer, não vendiam mingau de milho pra fazer graça, mas por necessidade óbvia e eu não queria deixar de ajudá-las. então combinei com ela, que naquela noite eu pagaria, mas que na próxima vez eu aceitaria a cortesia. ela então concordou e saiu acenando.
e eu fiquei fazendo mil conjecturas acerca da vida, dos encontros, e do quanto tudo pode ser simples, se quisermos...

sei lá, saí de lá e fiquei escutando o palavra cantada - trilhares...

20 comentários:

  1. Gostei muito deste texto!:)
    Espero que o comentário fique!
    Abraço

    ResponderExcluir
  2. Tenho a impressão que Judas não tinha botas, mas, normalmente, os lugares onde julgamos estarem perdidas dão em experiências muito naturais como esta.
    Muito legal tua crônica. Acabo acompanhando teus dizeres nos outros blogs e vez ou outra aqui também.
    A simplicidade, realmente, é uma forma bela de ver e viver. E teu texto é um belo exemplo disto.
    Beijão.
    Magna

    ResponderExcluir
  3. As surpresas e os "ensinamentos" de um dia bem passado junto a um rio lindo!

    ResponderExcluir
  4. prosa de abraços aos casos dos acasos. prosa de alteridades, prasa de deveir-outro, cosmo. prosa poética de poesia desprosaica da prosa do quaisquer-uns. prosa vital. prosa do indifinido, no rosto das potências das ruas. prosa desnatural de tão natural. prosa rio, tudo nela muda de tanto continuar mudando. prosa irresponsável, descomprometida com o progresso. prosa ilegal. prosa do para com o igual. prosa corporal. prosa almal.

    adorei te ler.
    b
    l

    ResponderExcluir
  5. Minha querida,

    Que experiência mais lindaaaaa essa!

    Li, reli, li novamente e concordo quando você diz:


    quanto tudo pode ser simples, se quisermos...


    E a gente precisa de tão pouco pra ser feliz...

    Lindooooooooo, lindooooooooo!

    Parabéns!

    Meu abraço, carinho e admiração!

    Tudo eterno!!

    ResponderExcluir
  6. Nessa paisagem

    creio que as coisas podem ser simples!

    Bjsss

    ResponderExcluir
  7. Eu vou sempre me surpreender com você. Consegue se distrair em qualquer lugar, até nos que não gosta.

    Beijo, Branca.

    ResponderExcluir
  8. Espero que tu também sempre fiques aqui no Canto, Álvaro!

    Obrigada pela presença!

    Abraço!

    ;)

    ~~~~~~~~~~

    Magna, prazer imento ter-te aqui no Canto. É verdade a vida é menos complexa do que a tornamos, enquanto nós... Quantos nós a desatar.
    Eu também a vejo em muitos blogues amigos, muito me honra a sua presença aqui, obrigada e volte sempre!

    Um beijão!!

    ;)

    ResponderExcluir
  9. mfc, a vida será sempre um espanto, se permitirmos, não? E os olhos de belezas (que tens), torna tudo mais bonito!

    Prazer enorme ter-te aqui no Canto, é seu também!

    ;)

    ~~~~~~~~~~~

    Prosa-delícia com alguém cujos olhos e realidade não foram ainda corrompidos. É sempre um prazer te ter aqui, La Mancha!

    Um beijão!

    ;)

    ~~~~~~~~~~~~~~~~

    Sillll, delícia é ter você aqui, queridona minha!

    Mil beijos para ti!

    ;)

    ResponderExcluir
  10. Pode sim, Calado, se deixarmos, não é?

    Obrigada pela presença aqui no Canto, grande prazer em tê-lo aqui!~

    ;)

    ~~~~~~~~

    Fernando, alegro-me pela memória que ajudo a construir!
    Volte sempre, prazer ter-te aqui!

    ;)

    ResponderExcluir
  11. Nussa, amanha volto ler tudiiinho :)

    ResponderExcluir
  12. Dei mais uma olhada nas tuas palavras e nas fotos que estão divertidíssimas.
    Mas, deixa eu te dizer uma coisinha fora do assunto: as adedonhas atuais terão que acrescentar o item: blog. Que tal?
    Te respondi lá no Sementeiras.
    Beijo.
    Magna

    ResponderExcluir
  13. Volta! Volta! Volta sim, Cris, sem pressa, quando der vontade, estaremos sempre, ainda que o tempo seja exíguo. Taí como eu bem sei disto!

    Beeeeijo!

    ;)

    ~~~~~~~~~~

    Hahaha! Adorei, Magna, as adedonhas acrescentarão esse item, fantástica intervenção a sua!
    Sim, é mais que honra, é uma alegria danada, afinal falaste de laços, e o blogue também cria essa possibilidade. E ainda cantarolei Roberto, baixinho, além da que citaste, esta: "Fecho os olhos pra não ver passar o tempo..."

    Ando cheia de saudades da prole!!

    Beijão, Magna, ótimo final de semana!

    ;)

    ResponderExcluir
  14. Queridíssima,

    mais que uma narrativa bonita, é a maneira que interpretou esse dia... como vê a vida, simples, sem "nós", pelo contrário, tranformando nós em lacos de se doar um pouco.
    Tanta, mas tanta gente precisa de uma simples atencao, e dispensá-la um cadinho que fosse, acho teria menos Rivotril vendido na farmácia.

    Ver a vida de modo simples, é um modo de ser feliz também.

    Um ótimo fim de semana pra tu, gatona!

    ResponderExcluir
  15. A sabedoria e a magia do povo, a oralidade importa mais do que o que se escreve.
    Amiga, li numa importante revista, que estão recuperando, resgatando a linguagem das tribos perdidas do Brasil. Uma reportagem fantástica...
    As crianças, a areia, tudo nos ensina a viver.
    Amei demais seu riquíssimo texto e as fotos são preciosidades.
    Obrigada por tê-la como amiga e um final de semana com D de divino.
    Só uma última observação: sou bisneta de índios e minha avó me contava causos de arrepiar os cabelos, acho que meu ato de escrever se deve muito a essa velha cabocla que jamais esquecerei. Pronto, fiquei emocionada!
    Beijos e muito carinho!!!

    ResponderExcluir
  16. Este texto soube-me muito bem :) Obrigada!

    Beijinhos

    ResponderExcluir
  17. Olá Canto da Boca...

    Antes de mais , parabéns pelo Blogue..! Gostei do que vi

    Gostaríamos muito que desse uma vista de olhos no projecto DVB, de saber a sua opinião, e qual o interesse em desenvolver o seu trabalho neste novo formato.

    \"Transformamos\" os seus trabalhos (já editados em livro, ou não ...), num DVB- Digital Video Book, uma ideia original da Pastelaria Studios Productions

    O projecto é recente, é uma inovação, tal como explicamos no nosso blogue:

    http://pastelariaestudios.blogspot.com/

    É exactamente isso, os seus poemas seriam "transformados" num DVB . Um livro que se vê como um filme ( com menu , extras, biografia, capítulos, etc... )

    Não somos uma editora e prestamos essencialmente um serviço criativo.

    A minha sugestão seria, enviar-nos os seus \"registos\", e nós faremos um orçamento.

    Posso adiantar que, por ser um projecto novo e, embora o trabalho criativo (audio, voz, imagem, construção do DVB, etc) seja bastante, queremos chegar ao maior número de autores de obras escritas, mesmo que essas estejam (ainda...) na gaveta .

    Realizamos e produzimos, também , Audio Books

    Fico a aguardar uma resposta e, qualquer dúvida… estamos por aqui.

    A sua opinião é muito importante para nós, pois só assim conseguiremos crescer e melhorar sempre ! e.... porque não, arriscar ?!

    Sem compromisso, escolha um dos seus poemas ou textos … e nós realizamos uma pequena amostra do nosso trabalho, é um presente nosso …para si …. :)

    Um grande abraço desde aqui

    Teresa Maria Queiroz

    pastelariaestudios@gmail.com

    ResponderExcluir
  18. Experiência bacana. Mas, mais importante ainda é estar aberta para esse tipo de encontro e ter talento para dividi-lo com outros, através das palavras. Beijo

    ResponderExcluir
  19. Estória com várias dentro, a capacidade de valorizar as pequenas-grandes coisas da vida.Seja onde for, há sempre algo de interesse para os nossos olhos, que nos retém a atenção e nos faz pensar.O importante é estarmos com o espírito aberto e atento...

    Gostei muito e eles também...os que fazem parte desta crónica.

    :)

    Beijo

    Olinda

    ResponderExcluir

Prazer tê-lo/a no Canto, obrigada pela delicadeza de dispor do seu tempo lendo-me. Seja bem-vindo/a!

b17

Os cães não ladraram  os anjos adormeceram  a lua se escondeu. Dina Salústio em   Apanhar é ruim demais imagem colhida na internet, d...