domingo, 8 de novembro de 2009

Outono

(imagem recolhida da net)

Vivo meu equinócio à revelia da vontade de Zênite, dias e noites se completam sempre com as mesmas vulgares ocorrências: nuvens serenas de poeiras, ventos leves, plumas airosas, alguns meros pontos de luz à risca dos olhos, embore admire o espetáculo monocromático das folhas secas que vagueiam perdidas entre bosques, praças e avenidas com árvores solitárias despidas de suas vestes. A íris a confundir-se com as cores indiferentes, frias e distantes do outono, estação do ano que quase me paralisa de tão bela que é, respiro devagar e cuidadosamente para não ser tragada pelo ocre das alamedas, caminho lentamente, mãos no bolso do casaco, com frio - esse fiel companheiro -, acompanho com o olhar o vai e vem das folhas que se soltam dos galhos como idéias porosas, e o pensamento em semi-círculos, dando volteios acrobáticos em torno de imensas saudades.

As pessoas passam por mim cerradas em seus próprios devaneios, suas lembranças, quem sabe suas dores, servindo de grades que impedem aproximações e o tempo gesta sentidos e sentimentos vastos em mim, disfarço-me em sombras como quem se esgueira por entre as folhagens densas dos jardins que sequer conheço, invento-me flores e cores, numa inútil tentativa de sobressair da multidão terracota que passa apressadamente à minha volta.

E nessa meditação sem fim, o vento arranca de mim, a última lembrança tua, quantas palavras sepultaste nesse dorido silêncio, nós que rompemos barreiras, destruímos abismos, clareamos cegueiras, hasteamos bandeiras; nós que fomos uma só tribo, barro, água, betume, azeite, sal; carvão, a nossa descoberta do fogo; cobre, cobalto, chumbo, zinco; lápis-lázuli, carbono, cádmio, crómio, titânio, mercúrio, hematite, todos os pigmentos em mescla, resultavam na nossa cor: amor-terra!

Ainda nas cavernas falávamos um idioma só, bebíamos em um só cântaro, cantávamos sinfonias com ardor. Fizemos dos nossos sonhos plantas imorredouras, costuramos os dias com a linha do horizonte, equilibrando a ilusão, num ponto eqüidistante, e nesse espaço itinerante, nossos já desfigurados semblantes, no orvalho da lonjura, são meros figurantes desse outono infinito.

Então vesti meu vestido mais bonito, aquele de cor encarnada, bordado de esperança, busquei um ponto do céu, enrolei num pedacinho de papel, salpiquei a doçura do mel e enviei no vento, vaticinei em solfejo: quando contemplares as estrelas, taciturno, ou em enlevo, aquela que se destaca entre todas, a mais brilhante, com total vicejo, sou eu lhe mandando um beijo. Inda diante do peso do que longe vai, do que tão longe está, a alma pesa como a luz, pensamento transfigurado, deixo teu sorriso guardado, calcinado, na caixinha do meu coração. Tento subverter os sonhos que me circundam, carrego-os com passos lentos, entre gestos e rituais, esses pequenos sinais, dilemas, que inevitavelmente terminam em poemas.

Quem me acompanha? Chet Baker, Autumn in New York... Vamos sentir!

20 comentários:

  1. outono é o mês mais engraçado. a vida não sabe se é verão ou inverno

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  2. Por vezes, a melhor lembrança é o esquecimento.

    Continuemos...

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  3. Néctar da Flor faz a primeira Blogagem Coletiva onde o tema é: Um conto de amor com cheiro de Néctar da Flor. É com muita felicidade que convidamos todos a conhecer um mundo encantado que há dentro de cada um. Conte um conto, seja personagem da sua história e sinta cada palavra escrita na hora que for contar.


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  4. acompanho-te na nostalgia deste Outono
    um beijo

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  5. "Invento-me flores e cores..." Dizer que este texto é lindo, ainda é muito pouco. Ele faz sentir e ver. Acompanhei você em suas lembranças e, pelas alamedas admiramos as matizes dessas cores outonais. Senti o frio companheiro e tuas palavras desenharam- me a paisagem outonal perfeita, tão especial nesta época do ano. Que prosa, amiga. Isto é "inevitavelmente" pura poesia.

    "Tento subverter os sonhos que me circundam, carrego-os com passos lentos, entre gestos e rituais, esses pequenos sinais, dilemas, que inevitavelmente terminam em poemas."

    Beijo

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  6. Vindo aqui e recifrando signos, querida.

    Boa quarta-feira.
    Continuemos...

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  7. Oi CB!

    :D que texto maravilhoso: aquece qualquer coração, nesta estação que já nos esfria!

    O Outono é mágico: adoro os tapetes de folhas; adoro as cores, as castanhas (o seu cheiro Mmmm), as camisolas, o tempo ideal para abraçar e dar beijinhos ;).

    Está tudo bem contigo, minha linda? I know it is :D!

    Beijosss

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  8. Esquecer? Não podemos ....
    Apareça, veja minha louca aventura.
    beijos amiga

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  9. este texto é uma imagem falada que nos leva - também - às nossas próprias memórias..
    Beijos

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  10. Boquita, flor
    Quanta delicadeza nesse Outono. Conheço bem a estação, me sinto igual a ela. Nem sou verão nem inverno, como disse Marcelo lá em cima. E muito menos primavera. Gosto de ser outono. Obrigada pela delicadeza no Turbante. Fico doidinha de contente com o seu afago.
    Beijo

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  11. Agora descobri porque demorei tanto em comentar esse post. Lindo ele é. Gracioso também. Mas não me fez bem, não me deixou legal: atiçou uma angústia esquisita, uma melancolia funda... Vou comentar isso com Freud na próxima sessão.

    Beijos ternos e saudosos da mana puglilista.

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  12. Gostei...
    Beijos
    Bom final de semana
    betho

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  13. Acho o outono lindo, ia ser mais ainda se por acaso desse pra perceber aqui no Recife, mas eu vivo de duas estações: "verão e chuva" rsrsrs...
    Cadê você moça que nem me adicionou?
    Tê esperando.

    Beijos

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  14. Ouxe, uma vez eu entrei no meu blog e tinha um recado teu dizendo que queria falar comigo pra eu te dar o msn, ai eu mandei um recado com o meu email. Era tu, Canto da Boca, não foi você???
    Muito estranho.
    Enfim, beijos!!!

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  15. é no brilho corisco dessa estrela outonal que a semente de primaveras saem do di-lema, e entram no poema, alcançando a poesia dos encontros entre a distância e o perto...
    te convido a conhecer o pés... a proposta de eco-socialismo...
    te convido também a visitar o blog, pichação, um poema de aguarda e de guarda.
    beijos
    luis de la mancha

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  16. De olho na tua casa e nas novidades... Um abraço forte.

    Continuemos...

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  17. Humana...

    Isso as vezes doi...Mas faz bem!



    beeejo

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  18. Canto da Boca,

    a minha estação favorita ... nos cambiantes da cor ... no cheiro dos campos ... no alternar das sensações...e humores...

    gostei muito do que li!

    um sorriso :)
    mariam

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Prazer tê-lo/a no Canto, obrigada pela delicadeza de dispor do seu tempo lendo-me. Seja bem-vindo/a!

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